A história alemã regista algumas curiosas analogias. Uma das menos auspiciosas é a que une o destino dos dois maiores políticos germânicos de sempre: o rei Frederico II da Prússia (entre 1740-1786), e o chanceler Otto von Bismarck (de 1862 a 1890). Frederico transformou a Prússia – um jovem reino criado em 1701 por entre as poeiras da constelação de pequenas e grandes soberanias associadas ao Sacro Império Romano Germânico – num Estado chave na balança da Europa. Para isso, urdiu com inteligência uma estratégia que combinava diplomacia, abertura cultural e religiosa, e uma das mais eficazes máquinas de guerra, que ele próprio comandou numa vintena de batalhas. Por sua vez, Bismarck foi o chanceler prussiano que desenhou, através da industrialização e da guerra, o processo que conduziria à criação da Alemanha como Estado imperial, em 1871. Pelo caminho ficaram os exércitos derrotados da Dinamarca (1864), da Áustria e aliados (1866), e da França (1870). A analogia que aproxima estas duas figuras maiores do universo alemão consiste no facto de que a obra das suas vidas tombou estrepitosamente apenas 20 anos depois da sua morte. Em 1806, Napoleão derrota e mutila a Prússia, impondo-lhe uma soberania limitada. Por sua vez, 20 anos após a morte de Bismarck em 1898, o II Reich implodiu pela combinação de uma revolução interna e da derrota incondicional na I Guerra Mundial.
A obra de Angela Merkel, por seu turno, traduziu-se na criação do que Ulrich Beck designou como “Europa alemã”. Uma hegemonia consentida por Paris, reforçada pela ex-ministra da defesa alemã na presidência da CE, baseada em 3 pilares: uma indústria de dimensão planetária, alimentada pelos combustíveis fósseis baratos da Rússia; um euro fraco, comparativamente ao que seria o valor cambial do marco, para facilitar o escoamento das exportações; uma aceitação tanto da supremacia militar dos EUA, como da relevância militar francesa no contexto europeu. Bastaram apenas pouco mais de dois meses, após a sua saída da chancelaria, para a sua obra entrar em convulsão. Existem dois sinais recentes de que a herança de Merkel, na qual Portugal ocupa um modesto e periférico lugar, está em perigosa desarticulação. As entrevistas de Merkel à Der Spiegel e ao Die Zeit, e o artigo do atual chanceler Olaf Scholz à revista Foreign Affairs com o título de Viragem Global. Como evitar uma nova guerra-fria numa era multipolar. Nas entrevistas, Merkel manifesta as fronteiras estritamente táticas em que se move o seu pensamento. Quis defender a sua política de energia russa barata, sem deixar de apresentar Putin como um obcecado pela “política de força”. Contudo, no meio do malabarismo acaba por dar crédito à narrativa de Moscovo, quando afirma que os Acordos de Minsk (2014 e 2015) foram um estratagema diplomático, apenas para dar à Ucrânia o tempo de reforçar o seu poderio militar. O artigo de Scholz é ainda mais preocupante. Em relação à guerra na Ucrânia, o chanceler defende um ainda maior envolvimento no conflito. Com a China, quer prosseguir nos bons negócios, esperando que a fidelidade confessada a Washington faça esquecer que Pequim, e não Moscovo, é hoje para os EUA o inimigo principal. Sobre a UE, traça um quadro de idílica unidade, ignorando as pressões externas e as crescentes fraturas internas. São dois exercícios, os de Merkel e Scholz, de tão grosseira colisão com a dura realidade. que só poderemos temer que as coisas no próximo ano piorem. E muito.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 17 de Dezembro de 2022
Magistral !