GERARD K. O’NEILL, O DESENRAÍZAMENTO COMO UTOPIA

Neste ano de 2022 comemora-se meio século sobre dois acontecimentos que têm sido abordados recorrentemente nestas crónicas de Ecologia: publicação do Relatório apresentado ao Clube de Roma, The Limits to Growth (Donella e Dennis Meadows et al., Os Limites do Crescimento, tradução para português da responsabilidade da Comissão Nacional do Ambiente, Publicações Dom Quixote, 1973); a realização da primeira grande conferência das Nações Unidas sobre Ambiente Humano, que teve lugar em Junho de 1972, em Estocolmo. Esses dois acontecimentos tiveram repercussões enormes, não apenas no plano político e económico, mas também no domínio dos nossos referenciais culturais e imagéticos. É sobre um desses casos específicos, o do físico e inventor Gerard K. O’ Neill (1927-1992), que esta crónica se debruça.

Físico e visionário. O’Neill caracterizava-se pelo espírito inventivo. Uma das heranças que deixou à Física foi um contributo importante para o desenvolvimento dos aceleradores de partículas. Contudo, ele tornou-se numa figura mediática em 1977 por ocasião da publicação da sua obra-prima, A Alta Fronteira. Colónias Humanas no Espaço (The High Frontier: Human Colonies in Space), que receberia o prestigiado prémio científico Phi Betta Kappa Award in Science desse ano. Como ele próprio explicou, nomeadamente numa entrevista de 1983 à também desaparecida revista ONNI (publicada entre 1978 e 1995), a sua motivação para escrever sobre o tema da colonização do espaço juntou um interesse sobre o tema, que provinha da leitura do pioneiro russo da astronáutica, Konstantin Tsiolovsky (1857-1935), com uma reacção muito negativa à leitura da obra acima referida de Donella e Dennis Meadows, sobre os limites do crescimento. Escutemos Gerard K. O’ Neill: “Os meus motivos [para escrever a High Frontier] foram acima de tudo humanistas, O Clube de Roma concluiu que a população continua a expandir-se, e que teremos de abandonar o desenvolvimento de uma maior liberdade individual aceitando uma vida muito mais regulada e com opções reduzidas, não apenas para nós, mas também para os nossos filhos e netos, e assim sucessivamente. Eu reagi a isso com desânimo e choque. Parecia um mundo infernal para deixar aos meus filhos”. Que o mundo antecipado pela cenarização apresentada na obra de Donella Meadows e colegas poderia ser infernal, disso não há dúvida. Com efeito, o estudo de 1972 utilizava pela primeira vez, numa grande escala fora do campo estratégico e militar, a moderníssima metodologia desenvolvida pelas ciências e tecnologias da informação. Donella e os seus colegas criaram um «modelo mundial» composto pela combinação dinâmica entre cinco elementos fundamentais: população, produção alimentar, utilização de recursos naturais não renováveis, industrialização e poluição. As conclusões eram claras: se a humanidade continuasse a seguir pela via do crescimento exponencial irresponsável dentro de cem anos (em 2070) a nossa civilização atingiria uma situação de colapso irreparável.

O que surpreende não é a inquietação de O’Neill com a herança que iria deixar aos seus quatro filhos. O que exige reflexão é tentar perceber a razão profunda e inconfessada que o levou a propor a saída da Terra para a colonização do espaço como solução para os problemas representados pela crise ambiental, já patente e inegável em 1972.

O Espaço como Nova Fronteira. O tema da Fronteira faz parte do imaginário norte-americano. Está associado a desafio, expansão e oportunidade de uma vida melhor.As ideias de O’Neill para a sua Fronteira espacial vacilam entre a base científica e tecnológica, que inegavelmente possuem, e uma pulsão visionária ao ponto do desequilíbrio, traindo uma imaginação que corre o risco de transformar as suas miragens em antecipações pretensamente sólidas. Como bastante inovadora deve destacar-se a tese de que a colonização espacial não deveria orientar-se para a superfície de outros planetas, mas sim para o espaço ele próprio, entendido não apenas como meio, mas como potencial habitat para a construção e instalação de grandes construções cilíndricas, que ficaram com o seu nome (O’Neill cylinder). Essas colónias começariam a ser construídas no espaço entre a Lua e a Terra, usando materiais recolhidos na própria Lua, que seriam catapultados para as zonas do espaço onde a construção teria lugar. O’Neill desenvolveu até um protótipo dessa catapulta (Mass-Driver) capaz de projectar pequenos fragmentos de minerais (da dimensão de uma bola de basebol) a altas velocidades. O desenho da vida social nessas colónias cilíndricas, onde o ambiente da Terra era simulado, foi também descrito nos seus textos e numerosas conferências e entrevistas. O’Neill transformou-se num propagandista da ideia da colonização, tentando apresentá-la à NASA e ao governo dos EUA como o verdadeiro sucessor do projecto Appollo.

Contudo, a NASA nunca abraçaria o projecto. Os seus custos seriam incomparavelmente superiores aos do Projecto Appollo. Apesar disso, logo após a publicação do livro, O’Neill considerava que a colonização do espaço entre a Lua e a Terra, através da instalação dos primeiros cilindros-habitáculos poderia começar entre 1992 e 2007. E mesmo em 1983, quando o Congresso já lhe havia batido com a porta a qualquer hipótese de financiamento, O´Neill ainda acreditava que em 2050 o movimento de passageiros entre as colónias no espaço e a Terra atingiria um volume de 200 milhões de passageiros…

O desprezo pela Terra. Elon Musk é hoje o mais notório seguidor de O’Neill. Mas onde o primeiro tinha uma centelha de génio e de fé, o segundo actua com o calculismo geométrico de um bilionário. O que é paradoxal em O’Neill é a combinação entre uma inteligência matemática e mecânica indesmentível com uma ausência de senso comum que se transforma numa modalidade particularmente insuportável de estupidez. Esse paradoxo pode ser desenvolvido em três linhas de força. Primeira: a sua recusa do Relatório do Clube Roma acaba por ser a completa rendição ao seu pior cenário. Na medida em que para salvar a humanidade é preciso abandonar a Terra, O’ Neill acaba por confessar que o modelo económico que devasta o planeta é imutável, sendo por isso obrigatório encontrar uma saída “infinita” no espaço exterior. Segunda: ao abandonar o planeta sem hesitação, O’Neill é congruente com a sua completa ausência de sensibilidade para a raridade da Terra. Para ele, a Terra é apenas um aglomerado de compostos químicos, infinitamente abundantes no universo, que podem ser (re) compostos pela tecnologia, sem problemas. Terceira: o seu optimismo tecnológico, tão grosseiro como arrogante, é acompanhado por uma antropologia totalmente ignara. Fala em enviar para o espaço milhões de pessoas, como se viver dentro das suas gaiolas de gravidade simulada, cada vez mais longe da Terra, e mesmo para além de Plutão, não fosse um desafio capaz de provocar uma epidemia de doença mental dentro dos seus absurdos falanstérios.

Na verdade, O’Neill pode ser visto como uma caricatura do quadro mental da tecnociência contemporânea, posta ao serviço da corrida para o abismo, chefiada pelas elites do poder e do dinheiro com a passividade de massas de consumidores distraídos. A sua religião laica tem apenas dois dogmas: 1.º o caminho é sempre para diante e em aceleração crescente; 2.º todos os problemas têm uma solução tecnológica, incluindo os problemas causados pela tecnologia. Não admira que, talvez ainda neste século, depois de A Grande Aceleração se consumir no seu próprio ardor, se passe a uma longa fase que poderemos designar antecipadamente como A Grande Acalmia.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado em 26 de Janeiro de 2022, no Jornal de Letras, p. 29.

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