A investigação policial sobre a eurodeputada socialista grega e ex-vice-presidente do Parlamento Europeu (PE), Eva Kaili, abriu o portal para um sórdido labirinto de corrupção nessa instituição. A trama em causa parece saída de um filme urdido pela mente de um escriba medíocre. Até agora foram resgatados 1,5 milhões de euros, em dinheiro vivo. Na casa da deputada, nas malas de seu pai, num hotel em Bruxelas, em Itália, na casa de um outro ex-eurodeputado, Pier Panzeri, agora convertido em líder de uma ONG com um nome atrevidamente despropositado (Combater a Impunidade/Fight Impunity). Também o líder da Confederação Sindical Internacional, Luca Visentini, confessou ter recebido um donativo, sem recibo, do tal Panzeri, para se fazer reeleger como secretário-geral da referida Confederação. Estamos perante uma rede de troca de favores políticos por dinheiro, envolvendo gente com carreiras políticas longas. A intervenção policial parece ter surpreendido práticas habituais e não deslizes de iniciados no crime de venalidade política. Não chega responder, como o fez a presidente da CE, com um enfático: “A Europa não está à venda!”. Infelizmente, quem está nos comandos em Bruxelas aparenta estar muito confortável nos seus assentos. O problema interno são os “populistas”, e o externo são as “autocracias”. A externalização diabólica dos males sempre serviu aqueles que recusam reconhecer que todas as instituições humanas – e o sistema representativo não é exceção – degeneram a partir de dentro. Quando a UE precisava de um murro na mesa para despertar o que resta do “espírito europeu”, o pomposo Josep Borrell comparou, arrogantemente, a Europa a um “jardim” e quase todo o resto do mundo a uma ameaçadora “selva” …
O que está em causa hoje continua a ser o problema matricial e permanente da democracia representativa moderna, iniciada no final do século XVIII. O povo governa, mas apenas através dos representantes eleitos. A integridade ética e a competência epistémica desses representantes são o fator crucial do sucesso democrático. Como a carne é fraca, as leis devem estar preparadas para prevenir o pior e incentivar o melhor nesses representantes. Os partidos, que fazem uma primeira seleção pré-eleitoral, têm uma responsabilidade superlativa. Por outro lado, o PE em vez de proteger os deputados das pressões dos poderosos interesses instalados, deu-lhes curso legal regulando as atividades dos lobistas. Os deputados recebem o voto de eleitores anónimos de 5 em 5 anos. O rosto amável dos lobistas aparece-lhes sempre que é conveniente… Se em Washington o resultado da corrosão lobista foi a transformação do Congresso no dócil instrumento da plutocracia reinante, na UE estamos a resvalar na crescente erosão da já de si frágil unidade europeia. Por isso mesmo, nunca é tarde para regressar às raízes e (re) aprender com os pioneiros que em 1788 publicaram o livro essencial para compreender a força e os limites da representação política: “Se os homens fossem anjos nenhuma espécie de governo seria necessária. Se fossem os anjos a governar os homens, não seriam necessários nem controlos externos nem internos sobre o governo.Ao construir um governo em que a administração será feita por homens sobre outros homens, a maior dificuldade reside nisto: primeiro é preciso habilitar o governo a controlar os governados; e, seguidamente, obrigar o governo a controlar-se a si próprio” (James Madison, O Federalista, ed. Gulbenkian, 51: 469).
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 24 de dezembro de 2022, página 10.