FAZER O LUTO PELO FUTURO, SEM DEIXAR DE LUTAR POR ELE

Para todos aqueles que como o autor destas linhas acompanham há muitas décadas, pelo pensamento e pela ação, o processo de degradação ambiental do planeta, há duas questões principais que nos causam perplexidade e nos desafiam para uma reflexão exigente. A primeira prende-se com o crescente dualismo entre os discursos e a realidade efetiva. Já não nos encontramos no tempo em que os negacionistas da crise ambiental e climática – por convicção própria ou cumprindo as suas inconfessadas obrigações contratuais com os seus clientes empresariais – ousavam colocar em causa as teses e conclusões das pesquisas verdadeiramente científicas, desenvolvidas em universidades, institutos, ou mesmo através dos relatórios regulares de organizações de alcance mundial, como é o caso do importante Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla inglesa). De facto, reina um aparente consenso sobre a gravidade do que está a ocorrer, e quase todos os países participam em convenções e acordos internacionais, supostamente destinados a combater as ameaças globais comuns a todas as nações e povos. Se assim é, como poderemos explicar que a destruição ambiental não só não tenha cessado, mas antes continue a intensificar-se? Esta primeira pergunta conduz-nos, de imediato à segunda questão, sendo que ambas implicam respostas articuladas e interdependentes. Poderemos formulá-la, à segunda pergunta, do seguinte modo: por que razões, chegámos tão tarde à consciência de que estamos dentro de uma crise global que caminha para se transformar num colapso existencial, caso não sejamos capazes de mudar radicalmente o nosso modo de habitar coletivamente a Terra? No fundo trata-se de desvendar um aparente paradoxo, enraizado no inconsciente profundo da nossa civilização tecnocientífica. Por um lado, orgulhamo-nos do nosso singular poderio científico e tecnológico, mas por outro, não sabemos explicar como foi possível termos despertado coletivamente tão tarde para a magnitude da ameaça existencial sobre nós próprios, que a entropia ambiental causada por esse poderio representa.

Estas duas perguntas estão latentes em todas as reflexões sobre o futuro. Fazem parte de uma sombria zona de não-pensado, de invisibilidade, que, contudo, se faz conhecer através das suas consequências danosas. É indesmentível que cresce uma cada vez maior consciência de que na encruzilhada dos cenários futuros, as estradas mais sombrias ganham uma dianteira probabilística inquestionável. Isso tornou-se cada vez mais percetível desde o início deste século, e em todos os domínios científicos. Nas ciências sociais, o tema do colapso civilizacional, ganhou colorações fortemente ambientais com Jared Diamond (2004). James Lovelock, alertou para o processo de mortalidade do nosso modelo de civilização, caracterizando a progressiva degradação da habitabilidade do planeta como uma “vingança de Gaia”, o seu nome poético para a Terra no seu todo vivo (2007: 200). Os cientistas do Sistema-Terra já não temem recorrer a uma linguagem que cede mais ao imperativo de espelhar a realidade do que a qualquer cortesia diplomática na comunicação da ciência. O público sedento de “verdades convenientes”, ficará dececionado quando se confronta com uma bifurcação em que, de um lado temos, com forte probabilidade, o horizonte inabitável de uma “Terra fornalha” (Hothouse Earth), e do outro, a possibilidade cada vez mais difícil e complexa de concretizar, de uma “Terra estabilizada” (Stabilezed Earth) (Steffen et alia, 2018). Mesmo este segundo cenário nunca seria o regresso a uma situação de “normalidade”, como aquela que se viveu até aos anos 80 do século passado. Quanto mais passa o tempo, mais importante se torna estudar os diferentes tipos e graus de catástrofe que qualquer cenário futuro forçosamente comportará. Mais uma vez, os mais avisados estudiosos das alterações climáticas (entendidas como parte mais visível do desequilíbrio do ambiente global) propõem às Nações Unidas, e ao IPCC em particular, a necessidade de incorporar nos estudos e relatórios uma metodologia que permita um “estudo integrado de catástrofes” (integrated catastrophe assessment), pois entrámos num período em que mesmo uma mitigação bem sucedida, já não dispensará uma fortíssima adaptação das sociedades às catástrofes que já não poderemos evitar (Luke et alia, 2022).

Não surpreende, portanto, que um tom melancólico e amargurado se torne cada vez mais patente nos pronunciamentos e tomadas de posições públicas dos cientistas que não fogem às suas responsabilidades como cidadãos. Justin McBrien, tendo em conta a dominação inexorável da Terra por uma maquinaria económica que transforma a complexidade viva em mercadoria morta rasurando qualquer preocupação com o médio e longo prazo, propõe em alternativa à designação de Antropoceno para a nossa época, a de “Necroceno”. O que seria próprio nesta nova fase da história não seria tanto o seu sujeito humano, mas o resultado tanatológico final que o engoliria também numa espécie de triunfo da morte (McBrien, 2016). Outro autor, olhando para a economia global numa perspetiva ecológica, considera que a humanidade entrou na sua “fase de praga” (plague phase), onde as escolhas minguam rapidamente (W.E. Rees, 2020). O futuro de que falamos é global e coletivo, mas é também profundamente pessoal, afetando a nossa identidade, a nossa relação connosco mesmos e com os outros. Para os estudiosos da maior tragédia da história humana, a entrada numa época de “adaptação profunda” (deep adaptation), implica também um longo luto sobre expetativas, interpretações, propostas de solução que a dura e cruel força do real acabou por desmentir, desmascarando o seu caráter ilusório (Bendell, 2018). Viver num mundo em que o futuro aparece como um plano inclinado, incapaz de servir de horizonte exige a coragem de olhar de frente a verdade, por mais dolorosa que seja, assim como a tenacidade de a perseguir até às raízes, na expetativa, certamente, de que algum sinal autêntico de esperança possa ainda ser encontrado.

Referências

Diamond, Diamond, Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed, New York, Viking Penguin, 2004; Lovelock, James, The Revenge of Gaia. Why the Earth is Fighting Back – and How We Can Still Save Humanity, London, Penguin Books, 2007; Steffen,Will et alia. 2018. Trajectories of the Earth System in the Anthropocene. PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America); Luke, Kemp et alia, “Climate Endgame: Exploring catastrophic climate change scenarios” (published August 1, 2022), PNAS 2022 Vol. 119 No. 34 e2108146119 https://doi.org/10.1073/pnas.2108146119; McBrien, Justin, “Accumulating Extinction: Planetary Catastrophism in the Necrocene”, in: Jason W. Moore (editor), Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism, Oakland, PM Press, 2016, 116-137; Rees, W.E., “Ecological economics for humanity’s plague phase”, Ecological Economics, 169 (March 2020),  https://doi.org/10.1016/j.ecolecon.2019.106519; Bendell, Jem. 2018. Deep Adaptation: A Map for Navigating Climate Tragedy. Occasional Paper, Institute of Leadership & Sustainability (IFLAS), University of Cumbria http://www.lifeworth.com/deepadaptation.pdf

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, na edição de 31 de maio a 13 de junho de 2023, p. 32.

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