FAMÍLIAS MORTAIS

Bem gostaríamos que fosse de outro modo. Mas não é. Se a humanidade nos dá alguns motivos de esperança, não faltam também os sinais de que a barbárie permanece pronta a eclodir nos lugares e paisagens sociais mais diversas. Segundo a associação feminista UMAR, as 9 mulheres vítimas de homicídio nestas primeiras semanas de 2019 correspondem a um terço das mulheres assassinadas no nosso país em todo o ano de 2018. A morte violenta de mulheres, vítimas de maridos, namorados e outros familiares recorda-nos a justeza da meditação de Thomas Hobbes, que no século XVII, para compreender a racionalidade de um contrato social começava pelas relações de conflito entre indivíduos. Em vez de sujeitos colectivos, iniciava a meditação pela estrutura das paixões humanas na mais pequena e singular escala. Ao contrário dos defensores do primado, ou quase exclusividade, das clivagens entre grupos e colectivos, sejam as lutas sociais e políticas entre classes, entre esquerda e direita, ou entre nações e religiões, a guerra civil doméstica que alastra em tantas casas portuguesas confirma a supremacia de género como um dos mais letais focos de agressividade entre indivíduos.

Durante milénios, a família fazia parte da sociedade, mas os seus membros não entravam na plena esfera do Estado. Na Grécia e em Roma, as mulheres, crianças, serviçais e escravos, integrando famílias em sentido amplo, ficavam excluídas duma relação com o Estado que não fosse mediada pela autoridade patriarcal. Muito mais tarde, na raiz das sociedades burguesas, constitucionais democráticas que são as nossas, vieram os direitos individuais e de cidadania, mas as mulheres ficaram para trás até ao século XX. Num século de guerras e revoluções, foi no Ocidente que mais solidamente se consagrou esse bem público inestimável de ter (um pouco mais de) metade da população, antes eclipsada e silenciada, a participar cada vez mais vigorosamente em todos os sectores da vida social, económica, científica e cultural.

Contudo, a consolidação do acesso por mérito próprio das mulheres a um estatuto de igualdade política e profissional crescente está longe de estar completo e ainda menos garantido. Muitas vezes esquecemo-nos que são as mulheres, a quem até o direito ao rosto próprio é cerceado, as grandes perdedoras dos fenómenos de fundamentalismo, predominantes no universo islâmico, mas com adeptos cristãos à espera da sua hora para empurrarem de novo as mulheres para uma posição subordinada. É inegável que em Portugal muitos passos positivos foram dados no sentido de transformar o direito da família. No passado recente, o que era juridicamente protegido não era tanto a família como comunidade básica de amor, educação e afecto, mas antes um modelo de ordem patriarcal. Essa protecção poderia ir ao ponto de consentir nas famílias zonas de excepção ao império da lei, buracos negros onde o estado de natureza substituía o estado civil. Hoje sabemos que também na família – no respeito pela igualdade e dignidade dos seus membros – é a qualidade da nossa democracia que está em causa.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 9 de Fevereiro de 2019, p. 35.

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