O que pensariam Locke ou Montesquieu do “sistema de eleição” dos “lugares de topo” da União Europeia, se tivessem tido oportunidade de vislumbrar a sua crueza rudimentar, que ficou à vista num Conselho Europeu (doravante, Conselho) pleno de insónias e malabarismos? Um dos activos que o constitucionalismo moderno nos trouxe foi a restauração das noções de ordem e regularidade de procedimentos – como condição da sua legitimidade – que as democracias gregas e a república romana foram pioneiras a instaurar, apesar de todas as suas imperfeições. Para aqueles que tinham a ilusão de que a UE estaria a caminho duma transformação mais democrática, a vaporização dos candidatos propostas pelo Parlamento Europeu antes das eleições de Maio, revela como o Conselho continua a mandar na UE. A teoria da separação de poderes é demasiado sofisticada para espelhar a fusão de poderes elásticos que se concentra no Conselho. Como uma espécie de “motor imóvel” é neste órgão intergovernamental – uma nova “balança da Europa” onde a contagem do PIB substituiu a das espingardas – que os chefes de Estado ou de governo decidem o rumo político a seguir. Dizer que a Comissão Europeia é um órgão quase-executivo, ou que o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia (o ex-Conselho de Ministros) partilham o poder legislativo, só pode ser afirmado, sem descaramento, por quem tenha esquecido que a crise europeia desde 2008 é marcada pela sucessão de dramáticas cimeiras do Conselho, que silenciaram o Parlamento e acorrentaram a Comissão aos seus imperativos.
A UE, incapaz de se reformar, assemelha-se cada vez mais a uma geringonça, anquilosada, delapidadora de energia nos processos de decisão, e completamente desfasada dos grandes desafios existenciais do nosso tempo, sejam eles as alterações climáticas, ou a preservação de condições de coesão e convergência internas, e de normalidade diplomática no plano externo. Uma geringonça à qual os países da zona euro entregaram a sua soberania monetária e de cuja aprovação dependem os orçamentos nacionais. Uma geringonça onde a democracia residual subsiste nos Estados, muitos deles cada vez mais disfuncionais, e onde o poder de facto não aparece nem transparente nem legitimado pelo princípio da representação. É verdade que elegemos os nossos chefes de governo, mas isso não nos torna em verdadeiros cidadãos europeus na altura em que eles se sentam no Conselho. A nossa cidadania europeia, a ser alguma coisa, é de natureza passiva e virtual, O nosso consentimento jamais é explícito, mas apenas tácito. Para além da patologia económica e financeira crónica da zona euro, temos agora a existência de perigosos nódulos em crescimento, como o dos quatro países de Visegrado. Na verdade, a procura de consenso no Conselho cada vez se parece mais com o bater das espadas em escudos nas assembleias germânicas de chefes tribais. Provavelmente, o vacilar entre civilização e desordem também dependerá hoje como há 16 séculos das decisões políticas tomadas em Roma.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado na edição de 6 de Julho de 2019 do Diário de Notícias, p. 26.