ENTRE CLAUSEWITZ E A ROLETA RUSSA

Nunca como hoje se tornou tão profundo o abismo entre a gravidade do mundo e a superficial banalidade de quem o deveria governar. Há 45 anos, no nosso campo ocidental, até os políticos profissionais perceberiam que numa guerra entre potências nucleares não poderá haver vencedores, apenas vencidos. Hoje, até os “peritos” contratados como consultores dos governos disfarçam a sua ignorância do que está em causa sob o manto postiço de uma convicta determinação.

            A encruzilhada entre a guerra e a paz sempre foi a magna questão da vida dos povos. Os indivíduos aceitaram o jugo dos Estados pela promessa da segurança das suas vidas e bens. O mestre incontestável na compreensão da essência da guerra foi um general prussiano, Carl von Clausewitz (1780-1831), que passou pelos campos de batalha contra a França revolucionária e depois napoleónica. Vencida a Prússia pelo Corso, em 1806, Clausewitz continuaria a sua luta nas fileiras do império russo. Mas a sua herança foi o seu livro fundamental, Da Guerra (Vom Kriege), que a sua mulher publicou em 1832. Clausewitz defendeu sem reservas que a guerra é um instrumento da política, que uma guerra sem um objetivo político claro e exequível é um massacre absurdo. Sobre isso, deixou fórmulas que muitos repetem, mas poucos entendem verdadeiramente: “A guerra tem a sua própria gramática, mas não a sua própria lógica”; “a guerra é a continuação da política por outros meios”; “o objetivo político é o fim, e jamais pode o meio [guerra] ser separado do fim”. A discussão ocidental tem-se concentrado no envio de armas cada vez mais poderosas a Kiev, incluindo o recente fornecimento britânico de munições de urânio empobrecido, o que constitui o primeiro passo no umbral nuclear. Falta fazer a pergunta fundamental: para que objetivo político servem essas armas? As respostas que têm sido dadas, incluindo as do nosso PM, visando a derrota da Rússia, são levianamente perigosas. A Rússia só poderá ser derrotada no plano convencional com a intervenção direta da NATO. Mas, mesmo nesse caso, essa “vitória” seria apenas o brevíssimo preâmbulo da escalada para uma guerra nuclear. Provavelmente, os russos usariam a sua superioridade de 1 para 10 em armas nucleares táticas (dados de 2022 de fontes dos EUA), mas em breve as armas intermédias e estratégicas entrariam em cena. Se os EUA ou a Rússia tentassem “decapitar” os mísseis intercontinentais (ICBM) do inimigo com um “primeiro ataque” (first strike), os indetetáveis submarinos atómicos da potência atacada vingariam esse “sucesso” lançando SLBM destinados a incinerar cidades…A estratégia de Washington, seguida sem pestanejar pelo rebanho europeu, quer tratar a Rússia de Putin como tem lidado com chefes quase tribais, de Milosevic a Saddam e Kadaffi… Os nossos líderes jogam à roleta russa com as nossas vidas.  Invertem o postulado de Clausewitz: fazem da política a continuação da guerra, empurrando-nos para um holocausto sem conceito nem remissão.

Adenda doméstica: A realidade fez borregar o NRP Mondego no rumo das Selvagens.  Num país com maiúscula, o mesmo CEMA que foi ao Funchal vergastar militares silenciados pela cadeia de comando, apresentaria de imediato a sua demissão, e os 13 marinheiros que tentaram poupar a Marinha a uma humilhação seriam reintegrados e louvados. No país real que habitamos, Gouveia e Melo permanecerá calado à espera que tudo passe. O herói acabou. Veremos se sobrevive o candidato presidencial.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 1 de abril de 2023, p. 11.

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