Em Defesa da Terra

Em 1967, o professor norte-americano Lynn T. White, Jr. (1907-1987) publicou na respeitada revista Science um pequeno artigo que se transformou num clássico de leitura obrigatória: “As Raízes Históricas da Nossa Crise Ecológica”. O texto refletia a enorme erudição do seu autor em cultura medieval e história da ciência e tecnologia, temas que lecionaria vida fora em universidades como Princeton, Stanford ou Califórnia, entre outras. A sua tese mais ousada consiste em fazer recuar o impulso tecnológico da Revolução industrial – que é geralmente considerado como o ponto de partida para a voragem atual da economia extrativista que está a destruir a habitabilidade da Terra – ao período medieval. White, Jr. vai considerar que importantes correntes do cristianismo medieval, com exceção de S. Francisco de Assis e do cristianismo ortodoxo de Leste, contribuíram para legitimar o uso e abuso da Natureza para serviço das necessidades e caprichos do ser humano. A teologia fundamental e originária do cristianismo que, de um lado coloca o Deus criador, e do outro, todas as criaturas, incluindo o homem (como S. Francisco não cessa de o recordar), foi sendo deixada de lado, em favor de uma visão do ser humano como uma criatura cada vez mais semelhante ao próprio Deus. O que aconteceu no século XIX, começando na Alemanha, com as primeiras instituições de ensino superior que “casaram” a ciência e a tecnologia – transformando o mundo inteiro num gigantesco estaleiro e numa enorme fornalha – já tinha uma validação religiosa com séculos de preparação. Não admira, pois, que tenha sido também no século XIX que o fenómeno teológico e filosófico da “morte de Deus”, se tenha declarado sem ambiguidade. Primeiro, na resposta de Laplace a Napoleão, quando disse ser Deus uma hipótese dispensável em cosmologia. Décadas depois, na filosofia e na cultura, também Deus se tornaria supletivo, para não dizer dispensável, como as páginas dramaticamente comoventes de Heine, Nietzsche ou Dostoievski o revelam.

A esta luz, o que o Papa Francisco tem realizado nesta década de atividade incansável é uma verdadeira revolução teológica, sem paralelo em qualquer das grandes religiões mundiais. Oito anos depois da sua encíclica sobre a situação ambiental e climática do nosso mundo, Louvado Sejas (Laudato Si), o Papa Francisco, aproveitando, também as vésperas da conferência climática que se irá realizar no Dubai (de 30 de novembro a 12 de dezembro de 2023), publicou a sua Exortação Apostólica, Louvai a Deus (Laudate Deum). Só por preconceito será possível ler o significado destes documentos como uma aproximação conjuntural e tática da Igreja Católica aos problemas contemporâneos decisivos da humanidade (o que já seria muito). Aquilo que o Papa efetua é um consciente regresso ao cristianismo fundamental do Santo de Assis, de quem retirou o seu nome. Nas origens da devastação ambiental e climática está o “pecado estrutural” de uma “economia que mata”. A civilização humana transformou-se numa máquina de entropia e anulação da diversidade. A verdade escondida na violência crescente entre os humanos e na destruição dos ecossistemas consiste numa deriva demencial visando prolongar a morte de Deus através da irradicação da Criação inteira. O humanismo, ao tornar-se hiperbólico, transformou-se numa força letal contra o futuro. Ou, nas palavras do Papa: “…Um ser Humano que pretende tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo”.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias na edição de 14 de outubro de 2023, página 11.

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