O rude ataque de Israel a António Guterres é um sombrio exemplo de como a ira, paixão individual, se pode transformar em política de Estado. Temo que seja mais um sinal da crescente probabilidade de que – muito antes da agonia ambiental e climática se tornar irreversível – a fúria de um conflito global possa desfigurar o nosso mundo em escassas horas, mergulhando a história num mortal silêncio. Os meios tecnológicos para tal foram iniciados na II Guerra Mundial, que foi também – e nós temos tendência para o esquecer – a primeira (e até hoje, única) guerra atómica. Sabemos que as primeiras bombas de fissão de 1945 foram rapidamente substituídas pelas armas termonucleares de fusão de hidrogénio, incomensuravelmente mais destrutivas. Contudo, também sabemos que durante as quatro décadas da Guerra-Fria nunca estivemos tão perto, como hoje, de uma situação limite. O rastilho que agora arde, e que poderá desencadear um conflito global, não reside, todavia, em considerações técnicas ou de relação de forças entre arsenais, mas numa raiz comportamental, causada por uma dupla amnésia, epistémica e ética.
Alguns exemplos podem ajudar a perceber melhor aquilo que hoje foi esquecido. Em 1948, quando Estaline bloqueou Berlim, os EUA eram a única potência nuclear no planeta, mas Truman não usou a arma atómica contra a URSS, limitando-se a abastecer Berlim ocidental através de uma ponte aérea. Durante a guerra da Coreia (1950-1953), a Casa Branca também recusou usar a arma nuclear, como resposta ao envolvimento da China no conflito. Depois da crise dos mísseis de Cuba, em outubro de 1962, o presidente J. F. Kennedy e N. Krutchev convergiram na criação de mecanismos para diminuir o risco de uma guerra nuclear. Alguns historiadores sustentam, até, que foi a aposta de Kennedy na paz, com manifesto desagrado do “complexo militar industrial”, o motivo real para o seu assassinato. Embora pertença a Gorbachev o principal mérito pelo fim da Guerra-Fria, a verdade é que Reagan também falou a mesma linguagem que o permitiu concretizar. Prevaleceu um consenso, com base em considerações epistémicas e morais, de que uma guerra nuclear envolvendo os EUA e a URSS, com os respetivos aliados, conduziria a uma “destruição mútua assegurada” (MAD, Mutual Assured Destruction). A MAD, no entanto, constitui apenas uma das faces da existência de arsenais nucleares. A outra face afirma o seguinte: a dissuasão nuclear só funciona se os Estados que têm essas armas estiverem dispostos a usá-las, em circunstâncias definidas nas suas doutrinas militares. Como sair deste paradoxo? Só através do primado absoluto da diplomacia e da cooperação política pacífica entre Estados, sobretudo entre aqueles que têm não só interesses diferentes, como diferentes visões do mundo.
Todo este saber prudencial se perdeu nestas mais de três décadas de hegemonia unipolar dos EUA. O controlo do Departamento de Estado, e parcialmente do Pentágono, por uma linhagem de quadros neoconservadores, entrosada com a omnipotente indústria bélica, transformou o milagre do termo pacífico da Guerra-Fria, numa “vitória” dos EUA sobre a URSS, destruindo conceptualmente a singularidade irrepetível desse processo: a URSS foi o primeiro (e único) império na história mundial que preferiu correr o risco de implodir, a seguir o roteiro histórico tradicional de todos os outros impérios que apostaram decidir tudo no campo de batalha. Não admira que, em vez da admiração inicial de Reagan por Gorbachev, a política externa posterior dos EUA tenha tratado sempre a Rússia com desprezo. Como uma potência em declínio, cujos interesses de segurança poderiam ser desprezados. Só esta linha interpretativa permite esclarecer os sucessivos alargamentos da OTAN nas fronteiras da Rússia, com a colocação de dispositivos militares que rompem a lógica de equilíbrio pretendida pelos tratados de armamento vigentes entre ambos os países. Os EUA habituaram-se a tratar os seus inimigos como chefes tribais. Por isso, Biden compara Putin com o Hamas. Lamentavelmente, se Trump pressagia uma guerra civil nos EUA, Biden, com o primado das armas sobre a diplomacia, tem-nos aproximado duma guerra mundial. Como se não bastasse o envolvimento das quatro maiores potências nucleares na guerra da Ucrânia, temos agora a explosão de violência na Palestina. Ao terror do Hamas, Telavive (também potência nuclear) responde com um desmesurado terror de Estado, que anuncia uma operação militar, com cobertura de uma poderosa força bélica dos EUA, de contornos ainda por definir. A Europa, no centro dos furacões ucraniano e palestiniano, parece vítima de sonambulismo. A vulgaridade da sua elite, sem coragem para olhar de frente a imensa tragédia que nos ameaça a todos, só não envergonha quem nem sabe o que a vergonha é. Tal como na Ucrânia, também na Palestina, qualquer tentativa de arrancar pelas armas o que se recusa obter pela diplomacia poderá sair fora de controlo, deixando a um tsunami termonuclear a derradeira palavra.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias na edição de 28 de outubro de 2023, página 14.