O artista e pedagogo alemão Karl-Eckhard Carius (n. 1942) visitou pela primeira vez as páginas do Jornal de Letras em 19 de novembro de 1991, num artigo sobre o Projeto Goethe-Pessoa, que ele dirigiu na Escola Alemã de Lisboa, acompanhado por dezenas de jovens estudantes entusiásticos. Esse projeto, assim como outros que Carius concebeu e realizou durante a sua atividade docente em Lisboa entre 1984 e 1992, mereceu repercussão internacional e recebeu até a visita do Presidente Mário Soares no dia da sua inauguração. As características que me impressionaram na personalidade humana e artística de Carius, nesse ano já tão distante, apenas se reforçaram e aprofundaram nas mais de três décadas que nos conduzem até ao presente.
O livro mais recente dado à estampa pelo artista germânico é em si mesmo uma obra de arte, que deixará um sabor amargo a pobreza em qualquer escrito de recensão. De facto, estamos perante um caleidoscópio deslumbrante de ideias ousadas, que se transformaram em projetos educativos e desembocaram em ações criativas e colaborativas que mobilizaram equipas de estudantes, e interpelaram públicos diversificados. O que no livro se regista, são imagens que fazem adivinhar a riqueza dos debates e dos gestos coletivos de que são resultado. Depois de uma parte inicial dedicada aos trabalhos desenvolvidos em Lisboa, entre 1988 e 1991, o livro concentra-se nas iniciativas levadas a cabo na Universidade de Vechta, no estado da Baixa Saxónia, onde Carius foi professor até se jubilar, e que ainda frequenta na sua atividade artística, pois o seu espírito inquieto não parece ceder dos limites da idade. Foi aliás aí, que Carius introduziu em 2002, pela primeira vez na Alemanha, uma disciplina de Pedagogia do Design.
São mais de trinta os projetos realizados em Vechta, entre 1995 e 2014, de que o livro nos dá conta. O que me parece mais importante destacar são duas ideias fundamentais que percorrem a obra de Carius. A sua pedagogia é concebida como parte de uma visão filosófica do mundo marcada por pensadores e poetas como Hölderlin ou Rolf Dieter Brinkmann, bem como pela amizade e mútua admiração com Bazon Brock que tem neste livro um ensaio, que merece destaque na própria capa. Essa raiz filosófica, tanto da pedagogia como de uma teoria da arte, conjuga-se na ideia de maiêutica, a arte socrática de fazer dar à luz o conhecimento que cada um tem potencialmente dentro de si próprio. Dar à luz é um processo doloroso, que exige esforço, compromisso e muita determinação. É aí que nos deparamos com uma segunda conceção identificadora da ação de Carius como artista e professor: a importância do projeto artístico como metáfora de uma utopia possível, mobilizadora de todas as faculdades e forças da condição humana, e que no limite, poderá ser um ensaio geral para uma nova forma de habitar a Terra, isso se quisermos sobreviver às consequências letais do modelo produtivista de predação da Terra que nos trouxe ao imenso abismo que nos contempla, cada vez mais próximo.
Esta é uma obra para artistas, educadores, amantes de todos os modos e tipos de expressão artística. Uma obra separada apenas pela distância da língua. Quem sabe se haverá algum editor corajoso, capaz de fazer a ponte que transforme a distância em plena vizinhança?
Karl-Eckhard Carius, Maieutisches Stöhnen. Über Ästhetische Bildung. Ein Fall von Design-Poetik (Lamentação Maiêutica. Sobre a Educação Estética. Um Caso de Poética do Design), Bielefeld, Athena / Wbv, 2022, 228 pp.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, edição de 22 de fevereiro de 2023, p. 28.