Vivemos dias enlouquecidos na Europa. Portugal parece governado por gente que desistiu de pensar, não hesitando em nos expor a todos nós como alvos numa guerra, para a qual não contribuímos, e que só se prende ao interesse nacional na justa medida em que o nosso próprio governo se revela incapaz de compreender que esta dança macabra à beira do inferno, se não a travarmos urgentemente, acabará por nos devorar.
A Europa perdeu o escasso resíduo de alma que lhe restava. Depois da sabotagem dos pipelines Nord Stream 1 e 2, a maior ação terrorista visando estruturas civis depois da II Guerra Mundial, reina um silêncio de submissão e medo. A autoria do atentado, nunca reclamado, é um daqueles segredos que todos conhecem, depois da detalhada investigação de Seymour Hersh, um premiado e corajoso jornalista de investigação. Nesse texto, povoado de datas e detalhes rigorosos, é demonstrada a ligação do governo dos EUA ao atentado. A Casa Branca, em resposta, produziu um desmaiado desmentido. Na verdade, como ocorre desde o início dos impérios que deixaram rasto na história, os aliados também têm de ser educados a respeitar a disciplina da potência hegemónica. Basta lembrarmo-nos do que Atenas, a Macedónia, ou Roma fizeram aos aliados que se portaram mal. A lição foi dada e o silêncio resignado da Alemanha, mostra que a lição foi aprendida. No futuro, Berlim já não andará com más companhias sem autorização superior. Esta guerra, e as sanções contra a Rússia, mas que, na verdade, atingem todos os europeus, são apenas uma das forças motoras que poderão conduzir a uma desastrosa fragmentação europeia, depois dos próximos anos de empobrecimento e revolta social que parecem cada vez mais inevitáveis. A Grã-Bretanha está à deriva. Se De Gaulle olhasse para a França de hoje, voltaria ao túmulo esmagado por desgosto.
A tribo europeia está outra vez entalada entre o patrão americano e o urso russo, que muitos davam por morto, mas que agora está pronto a incendiar o planeta se a sua existência como grande potência for ameaçada por mais uma “Grande Coligação” anti-Moscovo. Mas, acima de tudo, o que mata a Europa são os seus demónios interiores, a sua mesquinha desconfiança mútua, o seu horror à grandeza necessária para estar à altura da história, e a iliteracia das suas elites políticas. Um exemplo vivo do estado alucinatório em que navegam as chancelarias na Europa vem novamente da Alemanha. No seu governo, o falcão, que já se atreveu a declarar guerra à Rússia, é a entontecida ministra dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock. Dirigente do partido dos Verdes, cuja origem se encontra – numa lamentável vingança do presente sobre a tradição – na combinação entre ecologia e luta pela paz. Ela personifica não apenas o suicídio desse partido, mas o arrear da bandeira verde que nos últimos 20 anos tem sido uma imagem de marca da União Europeia e da sua ação externa. A agenda ecologista da Europa foi substituída pelo programa do armamentismo e pelo regresso em força ao carvão e ao nuclear.
O Anjo da História de Walter Benjamin
Este é um dos momentos que aconselha a rever o texto incompleto Sobre o Conceito de História, escrito por Walter Benjamim, entre fevereiro e maio de 1940. O manuscrito foi salvo por Hannah Arendt, que, ao contrário de Benjamin – morto em setembro de 1940, na fronteira franco-espanhola ao tentar fugir às tropas nazis – conseguiu chegar a Lisboa e viajar em segurança para os EUA, em maio de 1941. O texto contém um conjunto de 18 esboços de teses e um par de anexos. Uma escrita lacónica, por vezes encriptada na sua própria densidade, que desafia o leitor a fazer um exercício hermenêutico, semelhante ao trabalha do arqueólogo na sua tentativa de resgatar sucessivas camadas estratigráficas, sem destruir nenhuma delas. Nas reflexões de Walter Benjamin deparamos com uma interna e orgânica dialética entre marxismo e teologia judaica, sobretudo através da enorme influência do seu amigo Gershom Scholem. Mas, o mais interessante para o que nos confronta hoje, é a fidelidade a um messianismo revolucionário como única porta de saída para a sobrevivência da esperança em tempos de angústia e tragédia.
Messianismo revolucionário significa capacidade de estar atento às oportunidades de mudança, aos pontos de viragem que podem surgir, mesmo nos períodos mais inóspitos. Para Benjamin, o tempo histórico não é linear, pode por isso estar aberto ao papel de uma ação redentora, que nos afaste do abismo. Concordo com Benjamin no essencial, mas nunca aceitei a leitura que ele efetua, na sua nona tese, sobre um desenho de Paul Klee, que ele lhe comprara em 1921, com o título de Angelus Novus. Escutemos a forma como o filósofo berlinense interpreta o sentido dessa obra:
“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Os seus olhos estão esbugalhados, a boca dilatada, as asas abertas. O anjo da história deve ter esse semblante. O seu rosto está voltado para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vislumbra uma única catástrofe, que acumula incansavelmente ruínas sobre ruínas, dispersando-as a nossos pés.Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se nas suas asas com tanta força que ele já não pode fechá-las. Essa tempestade impele-o irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até ao céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.” (1)
A marca da tradição judaica, como o próprio Benjamin explica no último dos apêndices da obra, proibia a investigação do futuro, considerada como uma adivinhação de estatuto inaceitável. Ao futuro chegava-se, indiretamente, pela rememoração do passado, pelo resgatar do limbo do esquecimento de todos os injustiçados e vencidos. Será por isso que o Anjo da História, para Benjamin, em vez de olhar com curiosidade para o futuro, olha horrorizado para o passado, na tarefa hercúlea de nada deixar de fora para o acerto de contas do Juízo Final. Em 2023, julgo que temos matéria para discordar completamente de Benjamin. Os olhos esbugalhados de horror do anjo, voltam-se para o passado, porque ele, num momento anterior ao traço genético de Plaul Klee, contemplou o futuro. Vislumbrou um mundo crepuscular de guerra total e devastação ambiental, como sendo o destino para onde nos empurra o vento do “progresso”. Por isso, o anjo apenas no passado encontrou refúgio.
Nós, seres humanos, somos seres de futuro, de “consciência antecipativa”, como escreveu Ernst Bloch no seu tratado, Princípio da Esperança (1959). Mas para encontrarmos a esperança temos de a criar, temos de apostar mais na força messiânica da nossa ação coletiva, e não pedir demasiado nem à tradição nem à arte. Este é um mundo ímpar. Não temos cartas de navegação para enfrentar a tempestade. Estamos por nossa conta.
- Walter Benjamin, Über den Begriff der Geschichte (Februar bis April/Mai 1940), URL: https://www.burghalle.de/home/129_baetzner/SoSe_2017/benjamin_Ueber_den_Begriff_der_Geschichte.pdf
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, na edição de 8 de março de 2023, página 34.