Existe uma noção crescentemente difundida de que o nosso planeta mudou muito desde a Revolução Industrial. Ao longo dos anos, nesta crónica do JL tenho procurado documentar profusamente aquilo que o historiador John McNeill (2000) designou como “A Grande Aceleração”: o crescimento exponencial do impacto humano sobre o complexo software planetário, aumentando a sua entropia e desequilibrando os seus frágeis equilíbrios, de que depende a biosfera, incluindo a sobrevivência da nossa espécie. Contudo, mesmo entre as camadas mais educadas da população, em virtude também da visão fragmentada do mundo que nos é oferecida pelas formações académicas hiperespecializadas (mesmo dentro das ciências naturais e quantitativas), a dimensão, profundidade e significado dessa mudança é bastante vaga e imprecisa.
As políticas públicas de ambiente e clima – incluindo as suas conexões com as políticas de economia, saúde ou defesa – têm-se caracterizado pelo pressuposto não interrogado de que a crise ambiental e climática constitui um epifenómeno indesejado de um processo globalmente positivo, que pode ser corrigido através de uma convicção, também ela não questionada, acerca da essência ilimitada do nosso engenho técnico, capaz de estar à altura de todo e qualquer desafio (Soromenho-Marques & Ribeiro, 2022). Por muito dolorosos que sejam os danos colaterais, para essa visão convencional não está em causa a bondade do processo civilizacional em curso, nem a possibilidade de resolver, ou, pelo menos, atenuar substantivamente, atenuar os danos colaterais infligidos pela ação antrópica sobre o ambiente.
Em busca de uma nova visão da Terra
A história da ciência moderna manifesta sem ambiguidade a natureza coletiva e institucional da empresa científica. São precisos meios materiais e humanos, organizados numa perspetiva de longo prazo. A empresa científica tem de estar associada ao sistema educativo, suportada por políticas públicas, articulada com os atores de mercado, legitimada pelo apoio da opinião pública e das organizações da sociedade civil. O processo de transição de uma visão parcelar, disfuncional, das questões ambientais para uma visão holística, integrada, capaz de oferecer representações e modelos com uma sólida base quantitativa e uma rigorosa adesão à realidade concreta, foi bastante lento e penoso. Foi preciso aproximar disciplinas e, sobretudo, pessoas de culturas académicas diferenciadas. Foi indispensável reorganizar projetos científicos, incluindo difíceis estratégias interdisciplinares e complexos modelos de financiamento. Esse caminho começou a ser percorrido, com deliberação e consciência, por parte dos seus intervenientes, cerca da década de 1980 (o fim da guerra fria libertou meios e vontades para essa expansão). O resultado é o que hoje se designa, muitas vezes sem noção da novidade do que está em causa, a “ciência do Sistema-Terra” (Earth System science). No seu processo de construção, têm-se congregado não apenas as ciências naturais, mas também as ciências sociais e humanas (Steffen, W., Richardson, K., Rockström, J. et al, 2020).
O Sistema-Terra, ao ultrapassar uma visão especializada e fragmentar da “natureza” predominante durante séculos na cultura científica ocidental moderna, permite dar visibilidade a fenómenos e processos complexos “emergentes”, objetos que só se tornam visíveis a partir da combinação entre os domínios que, anteriormente eram encarados como áreas especializadas, tendencialmente autónomas, esse é o caso de um indicador fundamental para estudarmos as alterações climáticas, o da temperatura média global de superfície, como nos explica Will Steffen, um dos cientistas mais relevantes nas pesquisas sobre os nossos desafios existenciais:
“Basicamente, o “Sistema Terra” refere-se aos processos físicos, químicos e biológicos que interagem entre si e ligam a atmosfera, a criosfera (gelo), a terra, o oceano e a litosfera. Estes processos criam ‘propriedades emergentes’ – ou seja, propriedades e características do Sistema Terra como um todo, que surgem da interação entre estas esferas. A temperatura média global de superfície é um bom exemplo – é uma propriedade do Sistema Terra como um todo.” (Steffen, W. & Morgan, J., 2021).
Uma janela para a realidade escondida
Ao longo das últimas duas décadas, nomeadamente com a identificação do nosso presente como constituindo uma nova época da história geológica, isto é, do tempo longo planetário, o Antropoceno (Crutzen & 2000), essa ideia geral de um “Sistema-Terra” , de um planeta constituído não por blocos mecanicamente autónomos (como é representado na visão convencional), mas pela complexa interação e interdependência de processos, ciclos, e fluxos de matéria e energia, deu origem a um sofisticado modelo, e em permanente atualização. A Terra, modelada desse modo, compreende os seguintes campos e respetivos limites: 1. Alterações climáticas; 2. Taxa de perda de biodiversidade; 3. Ciclo do azoto/ciclo do fósforo – que compreende conjuntamente o limite do fluxo biogeoquímico; 4. Depleção do ozono estratosférico; 5. Acidificação oceânica; 6. Utilização global da água doce; 7. Alteração do uso do solo; 8. Carga atmosférica de aerossóis; 9. Poluição química (Rockström, J., Steffen, W., Noone, K. et al. 2009; Steffen, W., Richardson, K., Rockström, J., et al., 2015).
Trata-se de um autêntico painel de controlo, identificando os “limites planetários” (planetary boundaries) que não devem ser ultrapassados numa gestão prudente da nossa habitação histórica neste planeta. Um instrumento precioso para a sobrevivência, tanto mais quando é factual que em 6 desses 9 campos a luz vermelha do perigo já se acendeu. Parece-me desprovido de ambiguidade o desafio que a ciência do Sistema-Terra lança à política, à economia, ao direito, às relações internacionais, à ética: só conseguiremos evitar um colapso da civilização – que erguemos na base de uma fictícia visão da Terra (que considerámos, e continuamos na prática a considerar, como uma estrutura solidamente permanente e à nossa disposição para necessidades e caprichos) – se trabalharmos em conjunto, numa cooperação compulsória, imposta pela brutal realidade da encruzilhada existencial em que nos encontramos. Que em vez disso, sejam os demónios da guerra e da discórdia, a falar mais alto, diz-nos bem, da distância gigantesca entre aquilo que é e o que deveria ser.
Referências bibliográficas
MacNeill, John R., Something New under the Sun: An Environmental History of the Twentieth-Century World. New York: W.W. Norton, 2000.
Soromenho-Marques, V.; Ribeiro, S., “The paradox of 1945 and the blind faith that technology will save us”, LSE https://blogs.lse.ac.uk/businessreview/2022/06/08/the-paradox-of-1945-and-the-blind-faith-that-technology-will-save-us/
Steffen, W., Richardson, K., Rockström, J. et al. “The emergence and evolution of Earth System Science”, Nature Reviews Earth & Environment 1, 54–63 (2020). https://doi.org/10.1038/s43017-019-0005-6
Crutzen, Paul J. and Stoermer, E. F. 2000. “The ‘Anthropocene'”. Global Change Newsletter 41: 17–18
Steffen, Will & Jamie Morgan (2021) “From the Paris Agreement to the Anthropocene and Planetary Boundaries Framework: an interview with Will Steffen”, Globalizations, 18:7, 1298-1310, DOI: 10.1080/14747731.2021.1940070
Rockström, J., Steffen, W., Noone, K., et al. (2009b). “Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating Space for Humanity”, Ecology and Society 14(2), 32. http://www.ecologyandsociety.org/vol14/iss2/art32/
Steffen, W., Richardson, K., Rockström, J., et al. (2015). “Planetary Boundaries: Guiding Human Development on a Changing Planet”, Science, 347(6223). doi: 10.1126/science.1259855.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras em 21 de setembro de 2022, p. 29.