DISTRAÍDOS ENQUANTO O VESÚVIO RUGE

A guerra na Ucrânia já entrou na bolha mediática como um acontecimento do terrível normal, com o qual nos habituámos a viver. O aumento exponencial da violência, de que a batalha de Bakhmut é um sangrento exemplo, afastou as reportagens em direto. Contudo, agora que os sinais da esperada contraofensiva ucraniana se conjugam, nomeadamente através do aumento de ataques em território russo, incluindo Moscovo, o tema regressará ao primeiro plano.

Tenho de reiterar aquilo que escrevi desde o início do conflito. A invasão russa, independentemente da controvérsia sobre as suas causas, criou uma situação de rutura no sistema internacional. A resposta da OTAN, ao adotar como via única o crescente apoio militar à Ucrânia, veio transformar esta guerra no maior perigo que a humanidade enfrenta desde 1945. A ideia oficial de que esta guerra visa “derrotar a Rússia” manifesta o esquecimento de lições essenciais. Em 10 de junho de 1963, num discurso proferido na American University, em Washington, J. F. Kennedy partilhou o que tinha aprendido com a crise dos mísseis de Cuba, em outubro do ano anterior: “Acima de tudo, enquanto defendemos os nossos próprios interesses vitais, as potências nucleares devem evitar os confrontos que levem um adversário a escolher entre uma retirada humilhante ou uma guerra nuclear. Adotar esse tipo de atitude na era nuclear seria apenas uma prova da falência da nossa política – ou de um desejo coletivo de morte para o mundo.” A tese de JFK coloca-nos como imperativo reconhecer, que num conflito em que participam 4 potências nucleares, o primado é o de evitar o risco de aniquilação. A invocação do direito internacional para prosseguir a guerra é um erro de prioridades que pode levar-nos não à paz justa, mas à paz dos cemitérios.

Timidamente, começam a surgir notícias, nunca confirmadas, de que uma solução de “paz fria”, como a que existe entre as Coreias (no sentido que sugeri aqui num artigo de 11 de fevereiro), poderia fazer cessar as hostilidades, evitando a continuação da escalada militar e o risco de trágico descontrolo. No fundo, a questão fundamental é a de saber quando é que a via diplomática – que funcionou durante as primeiras semanas do conflito, até ser abandonada a favor da tese da via guerreira – poderá ser retomada para iniciar um longo processo de paz? Infelizmente, julgo que a perda de milhares de vidas e o risco de alastramento vão continuar, porque ambos os lados cometeram um dos principais erros que Hans J Morgenthau identificava nas relações internacionais: “Nunca se coloque numa posição da qual não possa retirar-se sem perder a face e da qual não possa avançar sem correr riscos graves” (Politics Among Nations, 1948: 565). Se para Moscovo e Kiev o que está em causa é existencial, para a presidência de Biden e sua equipa, onde se encontram elementos como Jake Sullivan e Victoria Nuland – há muito mergulhados até ao pescoço nos assuntos ucranianos – estão em jogo questões de prestígio nacional e pessoal. É por isso que Portugal nunca viveu um risco tão grave de segurança. O triste espetáculo da nulidade europeia, somada à incompetência da governação doméstica, revelada pela CPI da TAP, não nos dá tranquilidade quanto à sabedoria das instituições vigentes. Mas alienar no juízo de entidades coletivas, OTAN e UE, a soberania sobre a guerra e a paz, sobre a defesa das nossas vidas e bens, significa que, distraidamente, abdicámos do controlo sobre o essencial do nosso destino.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 3 de junho de 2023, p. 21.

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