DIPLOMACIA DE TERRA QUEIMADA

A vertigem de declarações políticas insensatas em torno da Amazónia revela a fragilidade do sistema internacional. Sobre a conduta errática e irracional de Bolsonaro e dos seus adjuntos em Brasília já tudo foi dito. Contudo, o G7, dominado pelo habitual e nem sempre esclarecido activismo de Macron, também deixou muito a desejar. Não só pelo que foi dito, mas pelo que foi sugerido. O mundo está demasiado perigoso para nos darmos ao luxo da falta de rigor diplomático. A questão principal parece-me ser esta: Dado o interesse extraordinário da Amazónia para o equilíbrio do ambiente e do clima planetários, faria algum sentido criar um estatuto especial de tutela internacional sobre a Amazónia? A resposta parece-me ser totalmente negativa. A ideia de territórios que são “património comum da humanidade” encontra-se sugerida no Tratado da Antárctida (1959), que até 2041 permite aos países signatários a presença pacífica, sobretudo para fins científicos, nesse território ainda sem soberanias nacionais. Já a categoria de “fundos marinhos”, da Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar (1982), é identificada ostensivamente como “património comum da humanidade”.

A Amazónia não corresponde a esse perfil. É um território legítimo dos países que partilham a bacia do grande Amazonas, e em particular do Brasil. No século XVIII, sobretudo com a acção diplomática e militar do Marquês de Pombal, o assunto das fronteiras ficou delineado mesmo antes da independência. Só por um inqualificável acto de agressão bélica poderia o Brasil ser privado da sua soberania sobre a designada Amazónia Legal. O problema de que ninguém falou é outro: a radical insuficiência do nosso direito internacional público, organizado em soberanias verticais, para traduzir e proteger a dinâmica biofísica transversal e horizontal dos ecossistemas de que dependemos. As instituições e o direito da actual geografia política – nascidos numa idade de ciência e tecnologia primitivas – são analfabetos perante as tarefas necessárias para sustentar os fluxos globais de energia e matéria do Sistema-Terra, face à crescente pegada ecológica exercida pela humanidade. A indispensável criação de uma Convenção das Nações Unidas conferindo valor jurídico ao Sistema-Terra, além de superar o espartilhado e estagnado modelo dos regimes internacionais de ambiente em vigor, não iria abolir as soberanias nacionais, mas antes alargaria a sua esfera de acção e responsabilidade. Iria permitir, pela positiva, que o Brasil em vez de receber esmolas, tivesse acesso, de modo contratualizado, a fundos internacionais para premiar o contributo positivo global para o clima, a biodiversidade, ou o ciclo da água, de uma Amazónia protegida, Essa Convenção iria, inversamente, denunciar países que, como os EUA, se desobrigam da protecção da atmosfera e do clima, ou que, como a França, enxamearam o seu território com centrais nucleares que, por serem um risco para a segurança colectiva, acabarão por ser desmanteladas à custa de todos os contribuintes europeus.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, na edição de 31 de Agosto de 2019, p. 27.

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