Cada vez mais o espaço mediático comum (formal e informal) se transformou num lugar de vertiginosa cacofonia. Depois da aparente quebra do ritmo de vida à escala planetária, durante os primeiros dois anos de pandemia, a velocidade anterior foi retomada com avidez e intensidade redobradas. Nem a guerra que se arrasta perigosamente na Europa, refreou o impulso para retomar a “normalidade” da paixão consumista, enchendo os aeroportos e as superfícies comerciais. Lentamente, vamos todos compreendendo que neste mundo cada vez mais pequeno e interdependente não existe nem rumo, nem caminho comum por deliberação. Vivemos em plenitude na distopia do mercado mundial. Em regime de piloto automático. Os neoliberais só podem estar contentes, pois o mercado triunfante apenas pede aos Estados que não se metam. A ideia peregrina de que seria possível isolar com sanções países que desempenham funções essenciais na divisão internacional do trabalho, como a Rússia ou a China, sem efeito de ricochete, só poderia acudir às cabeças de governantes tornados ociosos por uma globalização em que a velocidade substitui a ponderação e o fatalismo dos automatismos dispensa decisões e responsabilidades.
Na maioria das pessoas, a capacidade de adaptação tende a ser superior ao poder de resistência. A primeira, pode ser amarga, mas garante a sobrevivência. O segundo, pode ser heroico, mas quando se ergue em ataque frontal contra obstáculos invencíveis, pode levar-nos à morte ou à loucura. O difícil, contudo, é continuar a caminhar, sem nos transformarmos em zombies (sintomática criatura do bestiário imagético contemporâneo). Nunca subestimemos a terapêutica possibilidade de sermos surpreendidos pelo inesperado deslumbramento de uma obra de arte. Foi isso que experimentei ao visitar no MAAT uma extraordinária instalação vídeo da autoria de Alexandre Farto, um jovem artista português (n. 1987) já de renome internacional, mais conhecido pela assinatura artística “Vhils”. Chegou ao grande público através das suas intensas esculturas em baixo-relevo, em paredes urbanas pelo mundo fora. Este trabalho em vídeo, intitulado Prisma (e acessível até 5 de setembro), abre outras possibilidades de expressão para o seu génio. Resultou de recolhas de imagem realizadas entre 2016 e 2020 nas seguintes grandes urbes: Cidade do México, Cincinnati, Hong Kong, Lisboa, Los Angeles, Macau, Paris, Pequim e Xangai. O produto final traduz-se numa ampla, impressionante e labiríntica instalação, onde a luz provém inteiramente das telas. O conjunto, permite ao observador uma comovente experiência de imersão nos diferentes segmentos de imagem, que nos interpelam a partir de diferentes ângulos e níveis de altura. São imagens que olhamos e nos olham. Os filmes correm num ritmo de câmara lentíssima, como se existisse uma dimensão intermédia entre o movimento e a absoluta imobilidade. Não é possível fazer uma só passagem. Apetece regressar sucessivamente. Suspender também o nosso tempo. Verificar se aquelas jovens chinesas conseguiram, finalmente, atravessar a passadeira, ou se o trabalhador hispânico, ainda ergue a bandeira de controlo da passagem de peões junto a uma obra. Imagens, quase como prova visível da unidade psicológica da humanidade. Talvez tenhamos mesmo de desacelerar na vida real, a começar pela economia, para evitarmos o precipício para onde a nossa acelerada vertigem nos parece conduzir.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 20 de Agosto de 2022, página 12.