DERROTA MÚTUA ASSEGURADA

Entre a chegada de Gorbachev ao poder em Moscovo (1985) e a dissolução da URSS (1991) assistimos a um acontecimento sem paralelo na história mundial: um império colocou à frente da sua própria sobrevivência, o interesse da humanidade, evitando uma guerra nuclear generalizada que conduziria a uma “destruição mútua assegurada” (mutual assured destruction). A liderança de Gorbachev salvou a paz no mundo, mas com um custo doloroso para a o povo russo. Na nova Rússia, do centralismo estalinista e de economia planificada, transitou-se para um centralismo autocrático e para um capitalismo brutal e oligárquico. Entre 1991 e 1994 a esperança de vida na Rússia diminuiu 5 anos… Do lado ocidental, depois da simpatia inicial por Gorby, ganhou a tese de que a Rússia tinha perdido a guerra-tria, podendo doravante ser ignorada. Apesar das promessas de que a reunificação da Alemanha não implicaria o alargamento para leste da OTAN, a verdade é que esta se efectuou em duas fases principais (1999 e 2004), integrando uma dezena de aliados do ex-Pacto de Varsóvia, e mesmo ex-repúblicas soviéticas, como foi o caso dos Estados bálticos. Como brilhantemente percebeu José Medeiros Ferreira (ver seu artigo de 20 02 2007 no DN), num “discurso histórico” numa conferência de segurança em Munique (10 02 2007), Putin interrompeu 15 anos de “hibernação” russa: os interesses e a segurança da Rússia não poderiam continuar a ser ignorados nas decisões dos EUA e aliados. Contudo, em 2008, a Georgia e a Ucrânia foram convidadas a aderir à OTAN. A breve guerra desse ano na Georgia, e a anexação da Crimeia em 2014, mostraram que Putin tinha falado a sério em 2007: a Rússia traçou uma linha vermelha à expansão de uma aliança militar, que considerava fazer perigar a sua segurança nacional. O desastrado activismo bélico da OTAN e dos EUA nos últimos 20 anos, num proselitismo democrático coberto de sangue e ruínas, no Afeganistão, Iraque ou Líbia, ajudou a consolidar as reservas de Moscovo.

Contudo, as razões russas contra a surdez da OTAN, não legitimam a ofensiva bélica em curso na Ucrânia. A desmesura dos meios usados, esmaga a eventual bondade dos fins. A “neutralização” de Kiev pela via das armas constitui um gesto inverso àquele de Gorbachev: Putin está a arriscar a paz mundial para fazer prevalecer a sua visão de interesse nacional. E fá-lo, com uma determinação desesperada, depois do fracasso do objectivo russo de fazer da Ucrânia, nas fronteiras anteriores a 2014, uma nova Finlândia, aceite por Moscovo e pelo Ocidente. Impedir a OTAN de ficar com Sebastopol, ou anexar as regiões de maioria russa em Donetsk e Lugansk, não são sinal de uma vitória russa, mas uma perigosa operação de resgate de salvados. O que se vai seguir será uma incerta escalada de perdas e danos. As sanções vão fazer sofrer tanto a Rússia, quanto os seus promotores, em particular a União Europeia. Os tambores de guerra vão sobrepor-se à prioridade mundial do combate à crise ambiental e climática, que exige uma necessária e urgente cooperação compulsória entre todas as grandes potências. Desde a crise dos mísseis de Cuba que nunca estivemos tão perto de uma situação em que um desaire, um erro de análise, uma ferida narcísica perante a perspectiva de uma derrota convencional, possa fazer descarrilar o conflito para o patamar nuclear. Mais do que nunca é preciso que a lucidez prudente prevaleça sobre a precipitação e o ressentimento.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado em 26 de Fevereiro de 2022, Diário de Notícias, p. 11.

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