Nas recentes eleições verificámos, uma vez mais, a dificuldade transversal em falar dos problemas bicudos, ou em sair dos lugares-comuns. É interessante ter sido necessário que o pleito eleitoral terminasse para que o tema da seca fosse encarado com a centralidade que a dureza do real crescentemente imporá. Esse problema, que não tem travado sucessivos governos na aprovação do alargamento da agricultura intensiva, é apenas uma pequena orelha desse grande elefante na sala: a pressão crescente e multiforme da crise ambiental e climática. Ou seja, a metamorfose para pior do chão planetário que pisamos. Como é que se responde a isso? Com palavras mágicas, sendo a principal o “crescimento”, esse mantra de quem desistiu de pensar.
Assim como na física de partículas toda a investigação implica provocar a realidade que se estuda, não existindo experimentação que não seja sempre intrusiva, também nestas eleições aprendemos que todas as sondagens acabam por ser um factor de alteração profunda, não apenas do comportamento dos partidos, mas sobretudo da decisão dos cidadãos. Os eleitores mostraram ter aprendido a fazer contas e cálculos estratégicos, revelando perceber os limites do nosso modelo eleitoral, que os partidos insistem em manter inamovível. O “voto útil” tornou-se o substituto do “voto em consciência”. António Costa foi quem melhor percebeu essa inteligência colectiva e ganhou uma inesperada, conjuntural e condicional maioria absoluta, que, a acreditar no seu cuidadoso discurso de vitória, promete ser usada com moderação. Sem cair na tentação há muito definida por Adriano Moreira do “presidencialismo de primeiro-ministro”. Conseguirá Costa cumprir a promessa de não repetir a pulsão hegemónica ocorrida no passado?
Os desafios de uma realidade repleta de desafios urgentes, mas sem resposta conhecida, podem provocar sucessos e derrotas. Os casos do Chega e da Iniciativa Liberal (IL) ilustram a primeira situação. O BE e o PCP, a segunda. A vintena de deputados do Chega (12) e da IL (8) mostra como a ficção de passados imaginários serve de refúgio a ressentimentos e ilusórias esperanças, vestidos por discursos simplificadores e demagógicos. No Chega, domina um caudilhismo a roçar exemplos recentes de neofascismo europeu, onde a gesticulação encobre o vazio de alternativas. Na IL, destaca-se uma deslumbrada referência a um liberalismo, visto como ideia platónica – como se ainda estivéssemos nas Cortes Constituintes de 1821 – que só existe na voluntária distracção dos seus promotores. Por seu turno, o BE e o PCP confirmaram como pior do que a arrogância dos vencedores, só é a arrogância dos vencidos. Em conjunto, ficaram reduzidos a 11 deputados (1 deputado a menos do que o Chega). Perderam 20 assentos (o mesmo número do conjunto da nova direita). O botão para implodir a geringonça foi premido por ambos, com intransigência. Os estilhaços poderiam ter rasgado e paralisado o país, mas acabaram, sobretudo, por mutilar as mãos dos seus autores. Mas ali ninguém se demite, ou admite ter errado. O “colectivo” funciona nos dois partidos como um ácido que dissolve a responsabilidade pessoal. Há erros de “casting”, quando um artista estraga um bom filme. Mas há também o caso em que o argumento é incompatível com o artista. O PCP e o BE atingiram o seu limite no difícil “arco da governação”. Regressaram agora ao lugar tranquilo onde ainda sonhavam ter futuro.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 5 de Fevereiro de 2022, página 12.