O SG das Nações Unidas voltou a apelar aos governos do mundo, depois da publicação de mais um relatório breve do IPCC, sobre a necessidade de redução para metade das emissões de gases de efeito de estufa até 2030, se quisermos evitar a impotência perante catástrofes futuras. Ninguém o escutou. As grandes potências planetárias estão mergulhadas numa guerra irracional, porque insistem em ignorar que estamos em 2023 e não em 1944 (o último ano sem armas nucleares). Mas mesmo que evitemos tombar numa breve e suicidária guerra global, mesmo que as armas se calem nos campos de batalha, a “paz” que vai emergir será ameaçadora. O novo sistema internacional será claramente multipolar, mas percorrido por fraturas e hostilidades que irão aumentar a competição, diminuindo a cooperação e a ação coletiva indispensáveis para evitamos um colapso ambiental e o caos social, ainda bem dentro deste século. Tudo isto está a acontecer, apesar dos estudos e relatórios que mapeiam as tendências do futuro com precisão crescente. Estamos a viver num cenário de irresponsabilidade coletiva, devorando o capital natural de que dependem, para sobreviver em condições de dignidade, as gerações que hoje estão no início do seu percurso escolar.
O modo como no nosso país, com a permissividade e até entusiasmo deste governo, estamos a assistir ao saque e delapidação dos recursos naturais, do capital ecológico, do património paisagístico, de tudo aquilo que torna Portugal num território capaz de orgulhar os seus habitantes e atrair os visitantes estrangeiros, vai para além de todos os limites do suportável. Esse ataque ocorre usando toda a sorte de silêncios e argumentos. Em escassos anos, o Alentejo e o Algarve foram ocupados por culturas agrícolas intensivas, que vão do olival e amendoal aos mirtilos. Estas culturas introduziram em Portugal as novas formas de escravatura, praticadas na maioria dos casos sobre trabalhadores asiáticos, que só escandalizam os mais distraídos, incluindo a falsa surpresa dos responsáveis políticos que deram luz verde aos fundos de capital de risco que são a mola destes projetos. O saldo destas culturas são solos cada vez mais desérticos, recursos hídricos mais escassos, cargas tóxicas crescentes nos solos e nos lençóis freáticos. Mas a retórica da “sustentabilidade” e da “transição energética”, também serve para desbaratar de mais habitats da biodiversidade. Acresce a expansão de centrais fotovoltaicas em cima de montados com milhares de sobreiros destroçados, ou licenças para exploração de energia eólica off-shore, desenhadas a régua e esquadro, sem qualquer consideração pela especificidade ecológica desses territórios marinhos. Falta ainda o pior, que só poderá ser detido pela autodefesa das populações: a destruição de comunidades e paisagens pela mineração do lítio que se anuncia, para o bem maior da indústria automóvel internacional. Um patético exemplo do quotidiano desprezo pelas leis, é a inacreditável consulta pública que está a decorrer até 29 de março, sobre o projeto de aumento da área de exploração da cimenteira Secil, em pleno Parque Natural da Arrábida. Como foi autorizada esta consulta, quando a lei de ordenamento do PNA, de 2005, proíbe expressamente no seu artigo 8º, qualquer alargamento futuro? Este governo, e o passado tem também outros exemplos lamentáveis, representa um enigma: como é que se pode governar um país sem dar sinal de que se ama a terra e cuida do futuro das suas gentes?
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 25 de março de 2023, p. 9.