DEMOCRACIA MINGUANTE

A demissão de António Costa tem traços contraditórios. Por um lado, revela uma hipersensibilidade em relação às palavras de um comunicado da Procuradoria-Geral da República, anunciando um futuro inquérito, em foro do Supremo Tribunal de Justiça, às afirmações de alguns dos envolvidos no caso do lítio e do hidrogénio verde, arrastando o ex-PM neste imbróglio. Não será isto zelo excessivo, pois o PM apresentou a sua demissão sem ser arguido e sem conhecer o motivo que justificaria esse eventual inquérito? No sentido oposto, por outro lado, merece nota a total insensibilidade, diria mesmo astenia, do ex-PM perante os precedentes e os problemas com a justiça de alguns dos envolvidos neste caso, mais próximos de si. Recordo que as irregularidades de João Galamba com o lítio foram reveladas pela investigação da jornalista Sandra Felgueiras, em 2019, num programa da RTP1. O mesmo vale para todos os sinais de alarme associados a Lacerda Machado ou Vítor Escária.

O mais preocupante, contudo, é verificar como a III República vai minguando à medida que nos aproximamos do meio-século da sua fundação. É verdade que a democracia representativa, tem pouco mais de dois séculos. Foram políticos e pensadores como Alexander Hamilton e James Madison quem inventou os mecanismos constitucionais, de pesos e contrapesos. Ao contrário de Rousseau, eles não subscreveram a tese de que a democracia só conviria a um “povo de deuses” (peuple de dieux). Hamilton e Madison, acreditavam que uma boa Constituição poderia inclinar a favor do bem comum, a tensão permanente entre as forças morais que se agitam no coração dos homens. Hoje, a democracia norte-americana suscitaria angústia, e não esperança, aos Pais Fundadores dos EUA. O Congresso transformou-se num leilão legislativo entre tribos, todas elas vinculadas a poderosos interesses económicos, que funcionam como a fonte do poder real, que só ritualmente reside no voto popular. Com a existência de centros globais de poder económico, inchados em 40 anos de orgia neoliberal mundial, a arcaica corrupção transformou-se numa subordinação sistémica dos Estados aos negócios, ao Big Money. Por isso, as democracias voltam as costas aos perigos existenciais. Por isso, cada vez mais as políticas públicas são míopes, ignorantes, contraditórias e hipócritas. No caso português, as decisões onde o voto dos cidadãos ainda conta um pouco, são cada vez mais exíguas. Na política monetária, financeira, agrícola, de pescas, transferimos soberania total para Bruxelas e Frankfurt. Em todas as outras, a transferência é parcial, mas crítica. Em matéria de Defesa, os governos do bloco central estão há duas décadas a destruir as Forças Armadas, uma instituição que se confunde com a existência de Portugal. Deixámos esse assunto à OTAN, como deixámos a política externa à CE, que nos dita as sanções que Lisboa deve lançar contra países com os quais mantemos relações diplomáticas.

Quando um país já não tem anéis, sobram os dedos. Sempre houve gente nos governos capaz de trocar o interesse público por trinta dinheiros. Agora trata-se de espoliar pessoas dos seus bens e destruir a biodiversidade para enriquecer uma minoria em nome de álibis “verdes”. No passado, o poder de interesses influentes arruinou a ferrovia, plantou autoestradas para ninguém, e pontes nos sítios errados. Agora querem fazer de Portugal o Congo europeu do lítio e do hidrogénio. Não é só mais uma crise do regime. O país está cada vez mais vulnerável.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 11 de novembro de 2023, página10.

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