A guerra na Ucrânia é uma tragédia, como o era a situação dos Balcãs antes da I Guerra Mundial. Contudo, o atentado de Serajevo de 28 de junho de 1914 contra o herdeiro do Império Austro-húngaro, na verdade um episódio da turbulência balcânica, só é recordado por ter desencadeado o grande massacre europeu e mundial de 1914-1918. A centelha balcânica incendiou a frágil balança da Europa, que existia desde o Congresso de Viena (1815), tendo sido remendada em 1871, depois da fundação da Alemanha, na sequência das vitórias rápidas de Bismarck contra a Dinamarca, Áustria e França. Nas escassas semanas que decorreram entre Serajevo e a invasão da Bélgica pelo exército alemão, em 4 de agosto de 1914, ocorreu um processo de “irresponsabilidade organizada” (citando Ulrich Beck) típico das sociedades burocratizadas contemporâneas. Um grupo restrito de líderes medianos (não se encontrava aí uma única personalidade notável), recusou ir à raiz do problema, de modo a encontrar uma alternativa diplomática a um conflito generalizado. Preferiram agarrar-se ao guião das alianças e dos planos de guerra existentes, piorando a situação com algumas pitadas de ambiguidade diplomática (veja-se a conduta britânica). Mediocridade e dogmatismo “patriótico”, e eis o monstro da guerra industrial moderna à solta durante mais de 4 anos!
A Cimeira de Vilnius da OTAN exibe perigosas analogias com 1914. A multidão de políticos, diplomatas e conselheiros presente demonstra bem a atual baixa atratividade do serviço público para recrutar talentos e fomentar espírito crítico. A OTAN parece padecer do sintoma que Hannah Arendt designava como “mentira moderna”: a adesão a uma falsificação da verdade fatual que ilude os próprios criadores da falsificação. O que saiu de Vilnius foi a escalada num caminho que pode transformar o preço da guerra em curso numa hecatombe de destruição termonuclear com um saldo centenas de vezes superior às vidas perdidas entre 1914 e 1918. Se existisse alguma inteligência coletiva, talvez Vilnius pudesse ter recordado a Cimeira OTAN de Bucareste, em abril de 2008, quando a Aliança Atlântica convidou Kiev a tornar-se membro. Putin esteve presente. Explicou as razões pelas quais, para a Rússia, a Ucrânia deveria permanecer neutral. Fê-lo perante o secretário-geral da NATO da altura, Jaap de Hoop Scheffer, perante o presidente G.W. Bush e os outros chefes de Estado e governo. Sublinhou a natureza “complicada” da formação do Estado ucraniano, com territórios originalmente polacos, checos e romenos, e outros cedidos pela Rússia, no tempo da URSS, incluindo a estratégica Crimeia. Recordou que 17 dos 45 milhões de ucranianos (na altura) eram russófonos. A intervenção foi feita em termos conciliadores (apesar dos alargamentos da OTAN de 1999 e 2004). As observações de Putin em Bucareste, tiveram algum eco em Paris e Berlim, mas nenhum efeito em Washington. A guerra da Ucrânia só terminará, e a paz na Europa só será restabelecida, quando os interesses essenciais dos diferentes membros do sistema internacional e europeu forem tidos em conta, incluindo a Rússia. Nas relações internacionais a prioridade consiste em compreender mesmo aquilo que se condena. Empurrar a maior potência nuclear do mundo para fora do concerto europeu e global, pensando que é possível levá-la a aceitar uma derrota no campo de batalha convencional, é sinal de profunda incompetência e um perigo para a sobrevivência de todos nós.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 15 de julho de 2023, página 11.