DAVID CONTRA GOLIAS

Se o leitor for interrogado sobre qual o maior exemplo de avanço tecnocientífico ocorrido no século XX, é provável que responda: o Projecto Manhattan, o modelo de Big Science, que garantiu aos EUA, milhares de milhões de dólares e milhares de cientistas depois, ganhar a corrida à bomba atómica. Usando a notável dicotomia de Aldo Leopold sobre as duas faces da ciência, a saber, “holofote” (searchlight) e “arma” (weapon), a resposta estaria certa para a segunda face, aquela que está ligada à tecnociência como instrumento de poderio e dominação. Mas, se pensarmos na perspectiva da luz que nos orienta e nos pode salvar, então o maior acontecimento científico foi a descoberta da “curva de Keeling”, que é hoje o termómetro que permite cartografar, com rigor e sem disfarce, a deriva autofágica em que a humanidade continua embarcada.

Desde 1827que, graças a Jean Baptiste-Fourier, sabemos da existência do crucial fenómeno do efeito de estufa (sem o qual em vez da amena temperatura média de 14º C, a temperatura terrestre seria de -18ºC!). Por seu turno, John Tyndall, no final da década de 1850, conseguiu provar a ausência de contributo para esse efeito dos gases esmagadoramente presentes na nossa atmosfera, a saber, azoto e oxigénio. Percebemos que os gases de efeito de estufa (GEE) são quase residuais, com relevo para o dióxido de carbono (CO2) e o metano, sem esquecer o vapor de água. Em 1896, o químico sueco Svante Arrhenius estimou aquilo que hoje é da ordem da evidência: como estamos “a evaporar as nossas minas de carvão”, seria provável que em caso de duplicação da concentração do dióxido de carbono a temperatura média pudesse aumentar cerca de 5ºC. Está aqui o ponto crítico das actuais alterações climáticas: elas são antropogénicas, induzidas pela acção humana, não por variações naturais como as que foram estudadas por Milutin Milankovitch (1930). Na medida em que o nosso consumo exponencial de carvão, petróleo, gás natural, gás de xisto (além do metano produzido pela indústria agro-pecuária) aumenta a concentração de gases com efeito de estufa, de modo correspondente aumenta a escalada incontrolada do aquecimento global.

Contudo, foi preciso esperar pela segunda metade do século XX para aprender a avaliar com rigor a concentração do principal GEE, o CO2. Nem os Estados, nem as empresas mostraram qualquer interesse em medir o CO2, pois tal não aumentava o arsenal bélico nem os lucros. Com escassos milhares de dólares, e um convite de Roger Revelle – pioneiro do estudo do impacte das alterações climáticas nos oceanos – Charles David Keeling (1928-2005) realizou o seu tenaz e solitário trabalho de desenvolvimento de instrumentos e técnicas de medição do CO2 que hoje se tornaram padrão. Em 1958, quando Keeling fez a primeira medição, o valor era de 313 ppmv (partes por milhão de volume de CO2 na atmosfera). Em 1750, a concentração rondava as 275 ppmv. Em Maio de 2021 escalou para 419 ppmv. Uma curva exponencial que, paradoxalmente, sobe para o abismo ambiental e climático. Será preciso recuar milhões de anos, bem antes da entrada em cena dos humanos, para encontramos valores semelhantes. A febre da Terra ameaça inviabilizar a nossa sobrevivência colectiva em condições de dignidade. A “curva de Keeling”, essa descoberta de um herói individual, é uma sóbria e poderosa demonstração da irresponsabilidade organizada que comanda o mundo e nos torna a todos suas vítimas e cúmplices.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 29 de Janeiro de 2022, página 12.

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