Não perder a esperança, abrindo ao mesmo tempo os olhos e erguendo a voz para o dever de contemplar e dizer a verdade por mais amarga que seja, é não só uma obrigação ética, mas também um exercício de humildade gnosiológica. A seguir ao optimismo dogmático, que hoje campeia na cultura suicidária dominante, o pessimismo dogmático constitui a segunda pior atitude perante a crise existencial da civilização humana sobre a Terra. O autor das duas obras recenseadas nesta crónica, não se afasta um milímetro da postura correcta. Nunca desistir, sem nunca se iludir.
David Attenborough (1926) é uma das personalidades mais conhecidas pelos telespectadores em qualquer parte do mundo. Depois de se ter formado em Ciências Naturais na Universidade de Cambridge, lançou-se numa brilhante carreira de jornalismo de divulgação científica na BBC, que ainda prossegue, quase sete décadas depois do seu início em 1952. Os dois livros aqui abordados devem ser lidos pela ordem inversa à cronologia da sua publicação em Portugal. No primeiro livro, Viagens ao outro lado do mundo, o leitor encontra, servidas por uma linguagem ágil e elegante, 28 crónicas das reportagens naturalistas realizadas por David Attenborough durante uma década, entre 1954 e 1964, por lugares que, na altura, não eram só exóticos, mas profundamente pristinos, com uma biodiversidade e paisagens naturais ainda não perturbadas pela intervenção da civilização industrial e extractivista contemporânea. Os nomes são claramente sugestivos: Papua-Nova Guiné, Fiji, Tonga, Madagáscar, Austrália…Nesses anos, o jovem naturalista vai alargando a sua perspectiva e enriquecendo a sua compreensão da estrutura complexa e interdependente de todas as criaturas. As reportagens passam a integrar não só a vida animal, em sentido estrito, mas o ecossistema que a sustenta e as relações com os povos e os seus modos de vida.
O segundo livro, escrito aos 94 anos de idade, pode ser lido triangularmente: é um testemunho; um testamento; e um apelo dramático. A obra, após a introdução, está dividida em três partes, fechando com uma Conclusão e um utilíssimo Glossário. A primeira parte é constituída por dez subcapítulos, que têm datas como títulos (o primeiro é “1937”, e o décimo e último, “2020”). Cada um desses capítulos inicia-se com um tríptico de indicadores do estado do mundo: a) população mundial; b) concentração das emissões de gases de efeito de estufa na atmosfera; c) áreas naturais ainda preservadas. Com uma clareza comovente, Attenborough revela-nos a sua progressiva tomada de consciência sobre a acelerada destruição da biodiversidade e dos nichos ecológicos, provocada pela acção antrópica, nomeadamente, actividades extractivas e poluentes que inviabilizam habitats e conduzem à extinção de espécies. O naturalista começou a tomar partido. Relata-nos o seu envolvimento na luta pela preservação dos habitats dos gorilas-das-montanhas e pelo fim da caça às baleias, que os estudos científicos revelaram serem, por analogia grosseira com as abelhas, um tipo de “polinizadores” do mar aberto, fazendo a circulação dos nutrientes ao longo da coluna de água, prestando um serviço vital para a sobrevivência de todas as outras espécies oceânicas.
A vertiginosa rota de colisão em que a humanidade está embarcada, implica que o Antropoceno – esta novel época geológica que reconhece o poderio transformador da humanidade na Terra – só poderá ter dois desfechos. Se continuarmos apenas a fingir que fazemos alguma coisa para evitar o pior: “O Antropoceno poderá, na verdade, revelar-se unicamente um período curto na história geológica e que terminará com o definitivo desaparecimento da civilização humana”. Se, pelo contrário, reunirmos a força moral que sobra e o sentido de justiça, ainda mais escasso, para com as gerações futuras, poderíamos realizar um milagre de inversão de rumo. Nesse sentido a Antropoceno: “Pode ser um tempo em que aprendemos a lidar com a natureza e não contra ela (…) passaríamos a ser os guardiões atentos de toda a Terra, invocando a extraordinária resiliência da natureza para nos ajudar a resgatar a sua biodiversidade à beira do colapso” (p. 244).
Neste momento, os pratos da balança inclinam-se para a primeira possibilidade. Se quisermos evitar o pior não podemos deixar de o dizer em voz alta: “Falamos muitas vezes de salvar o Planeta, mas a verdade é que temos de fazer tudo isto para nos salvarmos a nós mesmos. Connosco ou sem nós, a natureza regressará.” (p. 246). Será que é preciso gritar até rasgar os tímpanos para que a humanidade acorde do seu perigoso sonambulismo?
David Attenborough, Viagens ao Outro Lado do Mundo. Mais Aventuras de um Jovem Naturalista, tradução do inglês por Marta Pinho, Lisboa, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021, 419 pp.
David Attenborough, Uma Vida no nosso Planeta. O meu Testemunho e a minha Visão para o Futuro, tradução do inglês por Marta Pinho, Lisboa, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2020, 293 pp.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, 20 de Outubro de 2021, Crónica de Ecologia