Muito recentemente foi publicado um Manifesto intitulado “Lutar pela Europa”, assinado por 30 pensadores europeus. Parece um caso típico da lamentável “falácia das competências”: o merecido prestígio dos signatários (na literatura e nas Humanidades) é emprestado de modo indevido para assuntos em que não apresentam qualquer credencial relevante (política europeia).O primeiro autor é o controverso Bernard-Henri Lévy, mas também lá não falta, em nossa representação, o escritor António Lobo Antunes. À partida, a causa da iniciativa é nobre – a preocupação com o provável ascenso dos extremistas e populistas nas eleições de Maio para o Parlamento Europeu. Todavia, o Manifesto desaponta por ser um absoluto e pomposo deserto de ideias. As teses do Manifesto são simples: a) a “grande ideia” de Europa está em perigo; b) a Europa está ameaçada pela barbárie das correntes identitárias, que querem travar a integração europeia; c) o combate decisivo é entre os “patriotas europeus”, erguendo o “facho” europeu (péssima metáfora!), e os “nacionalistas”. O Manifesto esquece a pergunta básica: como é que chegámos a isto? Com um simplismo devastador, o Manifesto trata o populismo como se fosse uma espécie de espontaneidade do mal, e não um sintoma da profunda doença em que a Europa agoniza.
A resposta à pergunta que o Manifesto se recusa a fazer – porque os seus signatários não parecem disponíveis para se colocar nas sandálias dos europeus que contam o dinheiro para chegar ao fim do mês – é esta: os caminhos que a UE seguiu na última década têm piorado as condições materiais e morais da vida dos europeus que vivem apenas do seu trabalho. Como o Manifesto refere a analogia da actualidade com os anos 30, talvez valha a pena recordar como os alemães se deixaram iludir pelo populismo hitleriano. Nas eleições de 1928, o partido de Hitler quase desapareceu, com apenas 2,6% dos votos. Os 4 anos anteriores tinham sido de recuperação económica. Contudo, a Alemanha foi o país que mais sofreu com o “crash” bolsista norte-americano de 1929. O chanceler Brüning (conhecido como o “chanceler da fome”) conduziu uma política de austeridade brutal, apenas possível pela suspensão parcial da democracia, sob os poderes presidenciais de Hindenburg: aumento dos impostos; redução dos salários; quebra do crédito bancário; diminuição das despesas sociais…O desemprego passou de 650 mil, em 1928, para 6,1 milhões, no início de 1933. As eleições de 1930, 1932 (duas) e 1933 mostram uma forte ascensão dos nazis e dos comunistas. Alimentado pelo desespero, em Janeiro de 1933, o partido nazi atinge 43,9% de votos e 288 deputados (numa câmara com 647). O populismo não é causa, mas sim consequência de políticas que esquecem os mais frágeis. Se a união monetária do euro continuar a servir para exportar carros para a China, à custa de “reformas estruturais” que liquidam os direitos sociais e promovem a injustiça entre gerações, então não haverá retórica idealista que resgate a Europa do beco sem saída, para onde a conduzem aqueles que a dizem defender.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado na edição de 2 de Fevereiro de 2019 do Diário de Notícias, p. 33.
Obrigado pelos artigos.
É raro ler comentários sociopolíticos, hoje em dia, sem mentiras e/ou propaganda partidária, mas o Professor Viriato Soromenho Marques consegue fazê-lo, respeitando apenas a sua consciência.
Uma cultura profunda e um rigor histórico sem par, fazem do Professor Viriato S. Marques leitura obrigatória.
Fico a aguardar o próximo…
Caro Prof. Soromenho Marques, saúdo-o pelos bons artigos que costuma escrever. Neste caso discordo quase em absoluto com a crítica e com os argumentos que apresenta, mas agradeço-lhe ainda assim pelo estimulante comentário que escreveu. O regozijo intelectual de redigir esta resposta foi deveras bem-vindo! Espero sinceramente que a extensão da mesma não o desencoraje de a ler. Apresento seguidamente a minha resposta em três pontos.
A crítica que faz aos referidos intelectuais é, em meu entender, desmerecida. Em primeiro lugar, o “manifesto pela europa” é claramente um apelo à defesa dos valores liberais, supranacionais e humanistas da União Europeia, como reacção aos apelos populistas e nacionalistas que criticam. É um manifesto político no âmbito dos valores, e como tal de apelo à participação e ao activismo daqueles que se revejam nesses valores. Tal artigo quer-se naturalmente simples e poético, pelo que cabe perfeitamente na “esfera de competências” de intelectuais da área das humanidades! Uma tentativa de apresentação política de soluções concretas aos problemas, ao estilo do manifesto comunista de Marx e Engels, entraria, esse sim, na típica falácia que o Prof. refere! Cabe aos políticos apresentar as tais soluções práticas, baseadas em dados económicos e sociais que se querem científicos, e guiados por valores que se querem éticos.
Em segundo lugar, não me parece que um manifesto pela defesa dos valores europeístas se deva centrar na crítica à UE. A auto-crítica é muito salutar e bem-vinda, goza de grande dinamismo na cultura europeia e não resolve absolutamente nada neste caso. Às críticas dos populistas devem apresentar-se os factos das vantagens de viver na europa mais pacífica, próspera e livre da sua história(!) ainda que com riscos sérios que merecem naturalmente toda a atenção. Relembrando o mecanismo de Thibault, as pessoas votam com os pés. Hoje vemos muitos imigrantes a colocar o seu voto na Europa, arriscando a própria vida no processo. O mínimo que se pede aos que já cá estão e que a apreciam, é que a defendam com a sua voz!
Como terceiro ponto, concordo com a análise que o Prof. faz sobre a a desadequação do modelo sócio-económico actual, assim como com a urgência desse debate politico. Noto que o Prof. também escolheu não avançar aqui com nenhuma proposta explícita. Se me permite, avanço as seguintes propostas: Não creio que voltar ao passado da Europa de Estados-Nação beligerantes seja uma solução séria, porque já sabemos como pode falhar horrivelmente. Concedo que a ideia de manter os “direitos sociais adquiridos” independentemente dos mercados não tenha falhado tão convicentemente como a ideia anterior, mas infelizmente não há dados (nem racional) que suporte a sua sustentatibilidade. Creio que é necessário pensar e aplicar novas ideias, de preferência pelo menos aquelas que não tenham falhado quando foram aplicadas! Tentemos então uma federalização da UE , um grande bloco democrático e liberal, com peso para vender à China em melhores condiçoes negociais, enquanto se apresenta aos chineses (e russos) enquanto alternativa viável de organizar uma sociedade de centenas de milhões de pessoas. Um império de liberdades e direitos cívicos, onde se entra pelo voto e de onde se sai pelo voto, sem guerras nem genocídios, sem tiranos nem partidos únicos.
Cordialmente e grato,
H. Bento