DENTRO DE ALGUNS anos ficará claro para todos que 2020 não será recordado apenas como o ano da COVID 19, mas também como a data em que um dos pilares em que assenta a ontologia fundamental do mundo biofísico, que serve de palco ao “som e à fúria” da história humana, começou a ruir sem possibilidade de remendo ou retorno. Com efeito, do gelo flutuante cada vez mais escasso nas águas do Oceano Glacial Árctico, passando pelo colapso do permafrost (solo permanentemente gelado), em vastas regiões setentrionais do Canadá e da Rússia, derivando para a instabilidade crescente dos glaciares das grandes cadeias montanhosas de latitudes intermédias, como é o caso do Monte Branco nos Alpes, não esquecendo o derretimento intenso da Antárctida Ocidental, por toda a parte os gelos considerados eternos da criosfera estão a desvanecer-se numa rapidez que tem ultrapassado todos os cenários e projecções dos mais competentes institutos de pesquisa climática do mundo.
Tudo isso se traduz numa escalada crescente do megaprocesso de alterações climáticas, pela acumulação e sinergia de uma série de novas retroacções positivas. Com efeito, o desaparecimento do gelo flutuante, substitui o efeito de albedo (a devolução para o espaço exterior de energia térmica) pelo seu oposto, o aumento da absorção de calor e de dióxido de carbono pela coluna de água oceânica. Os dias extraordinariamente quentes nas latitudes extremas têm levado à decomposição do permafrost, provocando a libertação de quantidades astronómicas de dióxido de carbono e de metano, cuja concentração na atmosfera irá fazer aumentar ainda mais a temperatura média, bem como as ondas de calor e os picos térmicos extremos. A contabilidade negocial das tristemente infrutíferas negociações climáticas já está errada antes mesmo de qualquer resultado concreto. Teremos de juntar às emissões humanas directas e quantificadas, as novas emissões “naturais” resultantes dos primeiros grandes impactos do colapso antrópico da criosfera. Teremos de rever as contas da nossa vida, a começar pelo aumento brutal do nível médio do mar ainda neste século. Pior ainda, como estamos a falar de mudanças ciclópicas e estruturalmente duradouras, que nenhum truque publicitário de Elon Musk irá resolver, resta o enigma de como habitar num mundo onde está ainda por construir uma cultura que nos ajude a sobreviver, por muitas gerações, sem a perspectiva de boas notícias, entendidas na semântica de uma normalidade que apenas sobrevive como holograma.
COMO FOI POSSÌVEL termos chegado até aqui? Como explicar que a nossa orgulhosa civilização tecnocientífica tenha fechado os olhos e embarcado na irresponsável festa do crescimento exponencial, ignorando todos os sábios alertas de prudência que desde pelo menos o início do século XIX foram sendo lançados, como outros tantos avisos à navegação? A hipótese penosamente melancólica, que só é possível assumir superando um doloroso desconforto, é a de que talvez a política à escala global tenha sido capturada por um omnipresente modelo ético, legitimador latente da marcha das coisas até ao seu estado actual. Essa hipótese significa que no grande debate setecentista entre a ética da liberdade do idealismo rigoroso de Kant, e a ética da utilidade, da imanência e da álgebra da maximização dos prazeres, de Jeremy Bentham (excluo o utilitarismo muito mais sofisticado de John Stuart Mill), tenha sido este último a ganhar de modo definitivo e absoluto o combate pelo primado dos princípios morais. Uma vitória tão definitiva, que arrasta com ela o fim da própria tensão motora no seio da filosofia prática, entre ética e política. Se aceitamos, como propõe Bentham – e mais ainda na modalidade exotérica e teoricamente simplificada da recepção popular da sua obra –, que o princípio da utilidade é o guia tanto para a acção do indivíduo, como para as medidas do governo, tanto para a felicidade singular como para a colectiva, contida nas promessas de uma política pública calibrada pela demanda da intensificação do prazer para o maior número, então encontramos nessa escola vitoriosa de utilitarismo a fórmula perfeita e quantificável que nos garante a unidade do ético e do político. Ou, por outras palavras, a realização de uma verdadeira “política moral”, mas sob o signo do cálculo empírico da felicidade, numa espécie de radicalização argumentativa de uma vontade totalmente dominada pela heteronomia, pela subordinação da vontade ao império dos objectos externos de desejo. Uma ética “humana, demasiado humana”, nos antípodas do kantismo.
Se a ética da liberdade, de matriz kantiana, implicava a manutenção de um espaço vazio de permanente incompletude, um horizonte de infinito ético, ou de perfeição da justiça política, sempre por realizar, sempre um passo mais além no “foco imaginário” da capacidade de nos transcendermos como pessoas e como comunidades, pelo contrário, a ética do utilitarismo unidimensional teria de fazer uma elisão do carácter finito do mundo biofísico (descerrando uma cortina de invisibilidade sobre os limites materiais objectivos do crescimento) sobre o qual implantava a nova era de uma política entendida como impulso permanente para uma sempre maior intensificação da produção e distribuição de uma felicidade traduzida na materialidade mensurável de bens de consumo.
NESTA DESMESURA MORAL de uma felicidade voltada para o usufruto de bens materiais, é impossível não vislumbrar a busca utópica pela melhoria das condições de vida, patente em Campanella, Bacon ou Descartes. Uma utopia traduzida na inovação permanente dos meios e dos instrumentos tecnológicos para o alargamento do “império humano “ (human empire), como escreveu Bacon. Uma utopia que ganharia velocidade de cruzeiro apenas quando se uniu ao coração produtivo do mercado, ajudando-o a tornar-se em sociedade de mercado. Uma utopia define-se tanto por aquilo que persegue e deseja como por aquilo que nega e esconde. Uma sociedade de mercado, como nicho da fecundidade multiplicativa de uma utopia tecnológica da felicidade sensível e material, implica uma política capaz de fazer do consumismo e do crescimento contínuo da produção a sua bandeira de justiça. Mas acarreta também a necessidade de alimentar e ocultar o paradoxo que reside no perseguir uma felicidade material ilimitada sobre os pés de barro de uma negligenciada fragilidade ontológica do nosso Planeta.
A esta luz, surpreendentemente, vivemos na época mais vigorosa da filosofia tal como o Ocidente a cunhou há dois milénios e meio. A profecia, contida na 11.ª tese de Marx sobre Feuerbach, está em vias de se realizar plenamente, embora não no sentido que o autor de O Capital desejaria. O utilitarismo é hoje uma filosofia mundial que já não se limita a interpretar o mundo, concentrando-se absolutamente na sua transformação. A procura da felicidade como prazer em todos os seus gradientes alargou-se ao transhumanismo. David Pearce, por exemplo, defende um “imperativo hedonista” através do qual o desenvolvimento da neurotecnologia deverá ser utilizado para eliminar todas as formas de sofrimento em todas as criaturas (humanas e não-humanas). Esta eliminação seria complementada positivamente pela afirmação de uma “engenharia do paraíso” (paradise engineering), que, através da recombinação genética, permitiria uma intensificação da capacidade de experimentar o bem-estar sob todas as formas, actuais e futuríveis.
Contudo, quando milhares de milhões de seres humanos perseguem, ao mesmo tempo, o mesmo projecto de felicidade, o resultado indesejado mais do que provável será a transformação da Terra numa tempestade ambiental e climática, de que o colapso da criosfera é uma prova maior, mas longe de ser única. O grande enigma por responder é o de saber se ainda teremos tempo para baixar a febre de felicidade imediata e a todo o custo, medida em unidades do PIB, que avassala o planeta. Se ainda teremos tempo e sabedoria para aceitar recuar numa marcha para a felicidade universal, que cada vez mais se revela como a via sem retorno para o “fim da história”. Não como a sua positiva realização hegeliana, mas como radical aniquilação física das promessas milenares acalentadas pela nossa humanidade.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, edição de 25 de Agosto de 2020, página 31.
“Por vezes, à noite, sinto-me esmagado pela escuridão e pelo silencio . Sinto-me ameaçado pela paz; talvez seja ela aquilo que eu mais temo. Sinto que a paz seja apenas uma fachada que esconde a porta do inferno.
Penso, “O que estará reservado, no futuro, para os meus filhos?’
‘O mundo será maravilhoso’, ouço dizer. Mas, do ponto de vista de quem? Se um telefonema pode anunciar o fim de tudo?
Precisamos de viver num estado de suspensão, como uma obra de arte, num estado de encantamento.
Temos que atingir um amor tão grandioso, que nos permita viver fora do tempo, desligados do tempo.”
Frase do personagem de Marcelo Mastroianni no filme “La Dolce Vita” de Frederico Fellini.