CRÓNICAS DE UM PORTUGAL SOBERANO

No dia do feriado religioso da Assunção de Nossa Senhora, muitas centenas de cidadãos não foram à praia. Romperam a anestesia e a passividade gerais reinantes, deixaram os ecrãs e foram, em conjunto, para a “rua”, esse espaço tridimensional e partilhado onde as pessoas podem agir em conjunto. Nós, os que não estivemos lá, talvez não o saibamos, mas eles foram também em nossa defesa, e daquilo que poderemos salvar do nosso futuro, todos os dias a ser ameaçado e agredido pelas pessoas e instituições que o deveriam defender.

Duas centenas de cidadãos estiveram no bosque de Morgavel, em Sines, para defender quase 2 000 sobreiros ameaçados pela intenção de aí construir um parque eólico. Bem mais acima, em Trás-os-Montes, a Associação Unidos em Defesa de Covas do Barroso, manifestou-se, mais uma vez, contra o projeto de abertura, por parte de uma empresa multinacional, da maior mina de lítio a céu aberto na Europa. Como, infelizmente, seria de esperar, esse projeto recebeu uma declaração de impacto ambiental (DIA) favorável, embora condicionada, da Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Multiplicam-se os apetites extrativistas para novas minas por esse país fora. Uma característica comum é o facto de as localizações previstas coincidirem com áreas naturais protegidas, ou violarem valores ecológicos defendidos por lei, como é o caso dos sobreiros de Morgavel ou os terrenos de reconhecida qualidade agrícola do Barroso. Para desculpar a transgressão das leis, utilizam-se argumentos aparentemente “verdes”, como o facto de se tratar de projetos ligados às energias alternativas. Trata-se de uma grosseira falácia. Primeiro, não existe nenhuma energia desprovida de impactos ambientais, seja em emissões de gases de estufa, seja na destruição da biodiversidade. No caso do lítio do Barroso, quem quiser perceber o desastre que se irá abater sobre uma belíssima paisagem humanizada pelo trabalho humano de séculos, em cooperação com os ecossistemas e não em confronto com eles, pode ver com os seus olhos o que são minas de lítio a céu aberto por esse mundo fora, a começar pelo deserto de Atacama no Chile. Pior ainda, aqueles que falam em transição energética como se esta significasse a possibilidade de uma total substituição de combustíveis fósseis por fontes renováveis semeiam ilusões. A esperança reside mais na gestão da procura do que num milagre do lado da oferta. Todos os dados históricos e prospetivos nos revelam que em vez de transição energética, o que temos é uma acumulação energética. O que aliás ocorre com as grandes multinacionais de energia que juntam ao seu portfólio as renováveis, sem deixar de continuar a apostar nos fósseis, que continuam a bater recordes globais de procura e consumo.

O que é verdadeiramente dramático é ver o governo e as oposições completamente alheados da realidade que todos os dias nos esbofeteia. A crise ambiental e climática está a entrar numa espiral de intensificação, que um sistema internacional enlouquecido pela guerra e competição desenfreada impede de mitigar. Portugal precisa de apostar na adaptação: defender cada hectare de solo arável, de floresta autóctone, os seus rios e águas subterrâneas, a biodiversidade terrestre e marinha, esses são os recursos indispensáveis para nos adaptarmos ao mundo ameaçador que “a economia que mata” criou. Nenhuma multinacional, nenhum governo nos pode expropriar do direito fundamental de legítima defesa quando tudo o mais colapsa.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 18 de agosto de 2023, página 10.

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