CONTINUAR A ERRAR O ALVO

Na década de 1990, sob Boris Ieltsin, a liderança política da Rússia era uma boa aluna do Ocidente. No desmantelamento do comunismo – incluindo a colossal entropia que se lhe seguiu com a perda de 5 anos de esperança de vida na população russa -, as privatizações, de onde resultou o atual capitalismo oligárquico, seguiram as receitas mais extremistas dos economistas neoliberais. Nesse naufrágio político, económico, social e territorial, gerou-se – como sempre acontece quando os Estados quebram e os povos ficam com fraturas expostas – também um profundo debate sobre raízes e identidade. O descrédito total do comunismo, e o amargo paladar do neoliberalismo, alimentaram uma crescente recusa do euro-atlantismo. A recuperação do filão euroasiático, patente exemplarmente no pensamento de Petr Savitsky (1895-1968), e que ajuda a compreender a presente aproximação à China, começou a fazer o seu caminho há trinta anos. A Rússia de Putin, marcada pelo nacionalismo, pelo culto da personalidade, culturalmente reacionária, combinando mitologia histórica, com fervor religioso e homofobia, não se fez de um dia para o outro. Em 2001, recorda Lord Robertson, ex-secretário-geral da OTAN, Putin perguntou-lhe se a Rússia iria ser convidada para integrar a Aliança…. Entre 1994 e 1999, muitos intelectuais e sobretudo diplomatas norte-americanos tentaram impedir ou atrasar o alargamento da OTAN a leste para não favorecer os sectores mais nacionalistas na luta pelo poder em Moscovo. Contrariando o conselho de Samuel Huntington, com a sua premonitória visão da entrada numa nova era das relações internacionais, caracterizada pelo “choque de civilizações”, e pela necessidade de integrar as plurais perceções culturais na política externa global, o Ocidente preferiu uma versão militar do proselitismo, alimentando monstros (Al Qaeda, Estado Islâmico…) e colecionando desastres uns após outros: Iraque, Líbia, Síria, Afeganistão.

A invasão da Ucrânia por Putin (acicatada culturalmente pelo cisma de 2019 da Igreja ortodoxa ucraniana face ao patriarca de Moscovo) constitui o momento mais perigoso para a paz mundial desde 1945. Seria preciso usar pinças, mas o Ocidente aparenta não mudar de método. As armas fornecidas para apoiar a justa defesa das forças armadas ucranianas, parecem agora destinar-se, segundo as palavras do Secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin, “a ver enfraquecer a Rússia”. O preço em vidas e património exigido à Ucrânia por esse objetivo não parece ser relevante. Com som e fúria, os nossos dirigentes implementam mais sanções contra a Rússia, não medindo as consequências reais das mesmas. Até agora, na esfera da energia, as sanções fizeram duplicar as receitas russas das vendas à Europa e aumentaram a inflação e as dificuldades económicas das empresas no Ocidente. Se olharmos o mapa-mundo das sanções, o Ocidente quase só conta consigo próprio. Na América, do México ao Cabo Horn, assim como em África e na Ásia (com exceção de Tóquio, Seul, Singapura e Taipé), em quase todo o mundo árabe, não há sanções à Rússia. A decisão de congelar as reservas de divisas da Rússia e de a afastar do código SWIFT mostrou a muitos países que o sistema financeiro mundial não é regido por normas neutras e universais, mas obedece a quem pode e manda. Para responder ao desafio da Rússia, sem cair no abismo nuclear, seria bom controlar a raiva e evitar a autoflagelação. Perceberemos a tempo que não existe alternativa ao exercício prudente da razão?

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 30 de Abril de 2022

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