Blaise Pascal (1623-1662) faz parte de uma pequeníssima selecção histórica de génios que parece ter sido dotada de uma fibra superior aos próprios limites da condição humana. Morreu com apenas 39 anos e 2 meses deixando uma obra vastíssima e diversificada em tantos domínios que, apesar de centenas de académicos terem dedicado a sua vida ao estudo da sua obra, não se encontrará um apenas que consiga tratar com igual profundidade os resultados da sua prodigiosa inteligência, seja na física (teoria do vácuo e dinâmica de fluidos), na geometria, na matemática (máquina de calcular, cálculo das probabilidades), como também na teologia (foi um jansenista fervoroso), na filosofia, na teoria moral.
Como Marco Aurélio, Montaigne ou Nietzsche, Pascal pode acompanhar um leitor ao longo da sua existência, pois é sempre possível redescobrir na voz do autor dos Pensamentos (Pensées) ângulos novos para iluminar as nossas experiências. Neste tempo de novo confinamento geral, reencontrei uma passagem que pode suscitar uma ponderação sobre a nossa situação actual: “Tenho dito muitas vezes que toda a infelicidade humana tem uma só origem, a saber, a incapacidade de permanecer em repouso num quarto.” O impulso humano para a acção, a inclinação para as actividades mais carregadas de emoção e adrenalina, como a caça e a guerra, estariam associadas não a uma força positiva, mas a um impulso geral negativo para afogar a nossa angústia perante a mortalidade da nossa condição. É essa fuga antropológica que Pascal designa como “divertimento” (divertissement).
Se estivermos atentos, saberemos por experiência directa e indirecta, que o confinamento revela e acentua também a desigualdade vigente na nossa sociedade. Nem todos os quartos onde ficamos confinados têm o mesmo grau de conforto, e para muita gente marcada pelo acicate do desemprego e da pobreza, ficar no quarto não é sequer uma opção. Correm para a agitação, não para esquecer a sua mortalidade, mas pelo imperativo da necessidade de sobreviver, face aos apoios insuficientes das políticas públicas. Mas se não quisermos desperdiçar o melhor do que Pascal nos pode oferecer, reconheceremos que o forte anseio de regresso à “normalidade” a todo o custo pode também esconder a recusa em assumir significados profundos da crise pandémica. Significados que vão para além da nossa esfera psicológica individual, colocando-nos na condição mental de membros da humanidade inteira, com a responsabilidade pelo futuro comum que lhe é inerente. O apelo de Pascal a não confundir a procura insaciável do aturdimento externo com a verdadeira felicidade, que se forma dentro da consciência de cada um, e que aceita o tempo do silêncio e da solidão como oportunidade de conhecimento e crescimento ético, talvez seja fundamental para não dissociarmos os nossos estilos de vida e de organização colectiva, das causas que nos conduziram a esta tragédia pandémica. Saber permanecer no “quarto” pode ser uma oportunidade para percebermos que o regresso literal à normalidade, ao estilo de vida anterior à pandemia, seria a receita para perdermos a estreita via que nos poderia afastar da catástrofe ainda maior da crise ambiental e climática, bem conhecida da retórica política antes de 2020, mas que parece ter sido varrida pelo “tédio” (ennui) daqueles que não conseguem ver a verdade de frente, sem dela desviarem rapidamente os olhos.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Noticias em 20 Fevereiro 2021