Qualquer pessoa sente quando se encontra numa atmosfera civilizada. Os principais indicadores desse estado que causa prazer e gera um sentimento de confiança, são os bens públicos. Administrações competentes, transportes cómodos e que seguem os horários, hospitais que cuidam de quem precisa, tribunais que servem atempadamente a justiça, água e electricidade que estão à disposição quando são convocadas. A Europa é um dos lugares mais civilizados do planeta, muito embora o nível esteja a baixar, como as queixas na imprensa alemã sobre infra-estruturas em falência o indicam. Em Portugal, que nunca esteve no patamar de desempenho, dos países da Europa do Norte, a situação está a sofrer atrito em muitos serviços públicos, como é o caso da saúde e dos transportes, Esse é um tema que atravessa a agenda do debate político, e que se prende com o milagre meramente aparente da “página virada da austeridade”.
Há, todavia, uma situação que, como cidadão, me causa bastante desgosto. Durante décadas, sempre que vivi temporadas no estrangeiro (Alemanha e EUA), senti, por comparação, um enorme orgulho no nosso serviço público de correios. Lembro-me de encomendas entregues em Portugal com endereço incompleto, que só um brio e uma diligência profissionais excepcionais dos carteiros tornaram possíveis. Hoje a situação é completamente diferente. Depois da privatização, a qualidade do serviço caiu a pique. Estações fechadas, marcos de correio desactivados, encomendas que não são entregues por um erro de algarismo no código postal, livros que não chegam ao destino sem razão aparente, horas a fio esperando na estação para levantar uma carta, com funcionários a trabalhar no limite. Num artigo publicado no Público (23 01 2019), Luís Aguiar-Conraria defendia a tese de que a privatização dos CTT tinha sido um “grande negócio para o Estado”, fazendo uma comparação com o advento da Netflix, que destronou as formas mais convencionais de aluguer de filmes. Na verdade parece-me ser uma analogia frágil. Os CTT públicos foram capazes de se modernizar, apesar da inegável diminuição do fluxo de correspondência, por isso é que se mantiveram rentáveis até ao fim. Uma parte significativa da população portuguesa continua a utilizar os serviços postais (basta visitar uma estação para o confirmar). O que está em causa nos actuais CTT é uma deliberada política de gestão danosa da procura, visando deliberadamente a sua desmoralização e diminuição (eu estou entre aqueles que temem receber avisos para levantar correspondência…). Tudo indica que quem comprou os CTT, o fez por causa da licença bancária que recebeu de brinde e para fazer a distribuição dos activos entre os accionistas. Será que, como sugere o articulista citado, os privados querem através do fomento do caos suscitar uma renacionalização e ganhar também à saída, com a indemnização que tal acarretaria? Talvez, mas o que é inequívoco é a substituição de um bem público por um mal público, com a cumplicidade de quem deveria defender um indicador básico de civilização.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado na edição impressa do Diário de Notícias, em 27 de Julho de 2019, página 27.