CIDADES: ROMPER O CERCO DE VELHOS E NOVOS DESAFIOS

A destruição causada em todo o país pela passagem das depressões Elsa e Fabien serve como um sinal de advertência da Natureza para os limites das acções festivas associadas ao prémio da Comissão Europeia ganho por Lisboa: Lisboa Capital Verde Europeia 2020. Mais do que celebração, espero que o tom dominante seja de mobilização. As próximas décadas vão ser de combate e resiliência. Lisboa e as cidades portuguesas – embora não se encontrem na situação trágica de muitas megalópoles mundiais que ao longo do século XXI vão colapsar esmagadas pelo peso de um crescimento em modelo de neoplasia – estão pressionadas por heranças negativa do passado, e ameaçadas pela escala e violência das catástrofes naturais inevitáveis, induzidas pelas alterações climáticas que entraram numa fase de crescente aceleração.

Heranças difíceis

Da crise financeira da zona euro, face mais visível do processo de entropia política da própria União Europeia, Lisboa e Porto, para falar apenas das principais urbes lusas, herdaram os custos do sucesso e da recente imagem positiva de Portugal. A riqueza cultural, a segurança pública, e a diversidade paisagística do país, tornaram as cidades portuguesas em pólos de atracção que rapidamente se transferiram para a categoria de activos financeiros. A especulação urbana está a colocar em causa o direito à habitação de cidadãos nacionais nos seus principais núcleos metropolitanos. Para impedir que este quadro grave se transmute num problema fora de controlo, exigem-se medidas dos municípios e do governo da República.

Contudo, a malha urbana nacional sofre das consequências negativas de opções e omissões no seu desenho e implementação, ao longo do último meio século, que foram previstas, analisadas e criticadas por ilustres figuras públicas como os arquitectos Ribeiro Teles e Helena Roseta, o engenheiro e geógrafo José Correia da Cunha, e o sociólogo António Barreto, entre outros. Em poucas palavras: o aumento da industrialização da década de 60 foi acompanhado pela falha de políticas públicas de ordenamento do território, pela ausência de um planeamento urbano de acento estratégico, pela suspensão da intervenção do Estado como garante da salvaguarda do interesse público. A privatização das mais-valias urbanísticas, consagrada na lei desde 1965, abriu o caminho para todos os desmandos, incluindo o facto incrível de a área do “território artificializado” ter crescido em Portugal 42% em apenas 15 anos! Perderam-se, em grande medida para a especulação, preciosos terrenos agrícolas, florestais e até zonas de elevado interesse ecológico.

Apesar do esforço realizado pelos municípios nos últimos anos, ainda são visíveis as marcas deixadas por décadas de incúria e desordem: bairros inteiros semeados sem uma ideia de harmonia, sem espaços verdes, sem a simulação, sequer, de uma aparência de beleza, construídos em função dos interesses mais mesquinhos e da cupidez de promotores imobiliários, e seus cúmplices nas administrações municipais, sem qualquer preocupação com o direito ao conforto e à qualidade por parte dos futuros moradores. Gente para quem a aquisição de uma habitação significa, em muitos casos, o principal investimento de uma vida de trabalho. E tudo isto, a escassa distância de cascos históricos, abandonados à erosão e indigência, causando todos os anos dezenas de derrocadas causadoras de mortos e feridos. Milhares de hectares de ricos solos agrícolas foram pavimentados e impermeabilizados, muitos recursos hídricos subterrâneos foram contaminados e degradados, já sem contar com as enormes perdas nas deficientes redes de abastecimento de água para consumo humano, que totalizam muitos milhões de euros por ano. A enorme distância entre os dormitórios e os locais de trabalho, aliadas a opções totalmente erradas em matéria de redes de comunicação e política de transportes, provocam congestionamentos rodoviários, poluição, e gastos energéticos totalmente irracionais.

Novos desafios

As alterações climáticas trazem novos desafios que se juntam aos anteriores. A belíssima cidade de Lisboa tem dentro da sua alma histórica uma ameaça letal cíclica, a do risco sísmico. Agora terá de juntar a isso o espectro dos perigos trazidos pela mudança climática em curso. O mais colossal – a exigir uma rigorosa estratégia de adaptação – será a inevitável subida do nível médio do mar (NMM). No caso de Lisboa, importa ter a coragem de planear para a eventualidade de dentro de 80 anos o NMM poder estar entre 1 a 2 metros mais elevado… É preciso estabelecer critérios claros sobre quais as áreas que deverão ser abandonadas ou defendidas. Mas, desde já, o aumento da frequência e intensidade de eventos meteorológicos extremos colocará as infra-estruturas debaixo de pressão cada vez mais aguda. É indispensável o investimento no aumento da resiliência dos hospitais e escolas, das redes viárias, dos sistemas de água e saneamento, das redes de transmissão de energia, das instalações de tratamento de resíduos, o reforço da protecção civil e dos planos de emergência. São medidas, inevitáveis, que reduzirão os custos e as perdas futuras, se adoptados com celeridade, e revistas e actualizadas com frequência.

O futuro irá colocar-nos à prova, sem paralelo com nenhuma geração do passado. A viabilidade do país e das instituições democráticas passará, em muito, pela capacidade das suas cidades se erguerem à altura dos velhos e dos novos desafios, de olhos bem abertos, com mente esclarecida, jamais trocando a dureza da verdade pela ilusão disfarçada de esperança.

Viriato Soromenho-Marques

1 de Janeiro de 2020, “Cidades: romper o Cerco de Velhos e Novos Desafios””, Jornal de Letras, p. 12.

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