CHARLES FOURIER (1772-1837). UM PROFETA VENCIDO DA NOSSA CIVILIZAÇÃO DISTÓPICA

A imposição da hegemonia avassaladora da utopia tecnocientífica, primeiro na Europa e depois estendendo-se ao resto do mundo, foi um processo complexo tanto no plano do pensamento como no da realidade concreta. Neste último caso, foi mesmo um doloroso calvário, marcado pelos inumeráveis sofrimentos da industrialização e do colonialismo. As revoltas contra a mecanização crescente no início do século XIX britânico – a destruição de maquinaria pelos trabalhadores que ficou conhecida como “ludismo – são apenas um exemplo de muitas outras formas de resistência, mais ou menos ativas, contra as políticas de construção da desigualdade empreendidas pelo capitalismo industrial ascendente. A violência sobre os camponeses, transformados à força em escravos da indústria, uma das forças motoras que conduz às paisagens de miséria social descritas por Friedrich Engels, a partir dos seus dois anos de experiência em Manchester, entre 1842 e 1844 (F. Engels, A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, 1845). A escravatura de classe, faz-nos correr o risco de silenciar outras dimensões da gigantesca metamorfose da organização e valores sociais que a Revolução Industrial representou. Um desses aspetos, muitas vezes negligenciado, foi o do impacto ecológico e ambiental dessas mudanças sem paralelo histórico.

Uma das vozes que, sem colocar de lado a luta pela justiça, procurou pensar o significado dos novos tempos, também na vertente do modo como a humanidade estava a mudar a sua relação com a nossa morada planetária, foi Charles Fourier (1772-1837). Figura inconfundível daquilo que os marxistas designam como “socialismo utópico”, e uma das figuras fundamentais do cooperativismo, Fourier escreveu um ensaio, talvez em 1820 ou 1821, que só seria publicado postumamente em 1847, na revista do seu movimento de promoção de falanstérios (Phalange). Trata-se de uma crítica estrutural da sociedade contemporânea que ele designa por “Civilização”, e que considera dominada por uma desarmonia inconciliável entre os interesses particulares e o interesse coletivo. A Civilização possui uma poderosa e insaciável dinâmica interna de expansão e exploração, não apenas dos humanos, mas também da natureza, que não respeita nenhuns limites. Fourier adianta mesmo o horizonte de trezentos anos como aquele em que a autodestruição da Civilização se tornará plenamente visível (Ver texto n.º 1).

Fazendo certamente alusão à legislação napoleónica, que aparentemente visava limitar a poluição, mas que, de facto, lhe conferia um estatuto regulado de normalidade, Fourier manifesta o seu total ceticismo quanto à crença na possibilidade de quaisquer normas jurídicas regulatórias poderem alterar a estrutura interna motora da Civilização, regida por um mortífero impulso devorador (Ver texto n.º 2). Por isso, Fourier não hesita em considerar que a maior tarefa da razão consiste em tentar encontrar uma saída não para os males da Civilização, mas para a sua superação, antes que os seus escombros tombem sobre nós (Ver texto n. º3). A tarefa da razão não era, contudo, fácil. A Civilização trabalha veloz e vorazmente no plano material e físico. A sua tarefa consiste na degradação planetária, afincadamente planeada e executada, em total contraposição quer às promessas da ciência, pelo menos no longo prazo, quer às fantasias dos metafísicos, incapazes de compreender a total independência e autonomia dos processos civilizacionais de destruição planetária, que a agudeza do olhar de Fourier captava com suprema clareza, apesar do enorme lapso temporal que dele nos separa(Ver texto n. º4).

A exatidão da análise duas vezes secular de Charles Fourier, uma voz ousada, mas não solitária, obriga-nos a rever os preconceitos que mesmo as pessoas mais comprometidas com a luta pelo ambiente (isto é, a luta para nos salvarmos do pior de nós mesmos…), involuntariamente alimentam. Deixo aqui uma forte palavra de elogio ao trabalho notável levado a cabo por historiadores e outros cientistas sociais no CNRS, em Paris, pesquisando as raízes das representações da crise ambiental e climática. Nos seus trabalhos, onde se destaca o historiador Jean-Baptiste Fressoz (ver referências), demonstra-se que antes de entramos na rota desmesurada de autodestruição em que nos encontramos – alimentada pela alegre e desinibida destruição de todos os mecanismos de autocontenção e prudência – houve uma dura batalha de ideias e de projetos de mundos possíveis. Charles Fourier foi um desses generosos heróis que se deu integralmente, e até ao esgotamento, na causa da proteção do seu futuro, que é o nosso presente. Para desgraça nossa e dos vindouros, ele foi derrotado.

TEXTOS DE CHARLES FOURIER

Texto n.º 1: “A civilização perde-se pelas suas próprias obras. Qualquer país que tenha alcançado a Civilização plena não demora mais de três séculos a dilacerar-se pelas suas próprias mãos através da incompetência das culturas que degradam as montanhas, os rios, a atmosfera, enfim tudo”.(La Civilisation se perd par ses travaux même. Tout pays arrivé à la pleine Civilisation ne tarde pas trois siècles à se déchirer de ses propres mains par l’impéritie des cultures qui dégradent les montagnes, les fleuves, l’atmosphère, tout enfin.).

Texto n.º 2: “É, portanto, extremamente ridículo fazer decretos que ordenam que a civilização deixe de ser ela própria, que mude a sua natureza devastadora, que sufoque o seu espírito voraz sempre inclinado na agricultura como nas finanças para devorar o futuro, matar a galinha para ter ovos, tal é o espírito da civilização e das sociedades de ordem incoerente.” (Il est donc souverainement ridicule de s’arrêter à faire des décrets qui enjoignent la Civilisation de n’être plus elle-même, de changer sa nature dévastatrice, d’étouffer son esprit rapace toujours porté en agriculture comme en finance à dévorer l’avenir, tuer la poule pour avoir des œufs, tel est l’esprit de la civilisation et des sociétés d’ordre incohérent.).

Texto n.º 3: “Temos um excesso de experiência sobre o mal da Civilização, e já não é permitido aos homens leais negar que a Civilização é o flagelo da humanidade, que a ordem atual do globo não é um verdadeiro inferno material e social, e que a razão deve ocupar-se, deixando tudo o mais de lado, na procura de uma solução.” (Nous avons sur la malfaisance de la Civilisation un superflu d’expérience, et il n’est plus permis à des hommes loyaux de nier que la Civilisation ne soit le fléau de l’humanité, que l’ordre actuel du globe ne soit un véritable enfer matériel et social, que la raison ne doive s’occuper, toute affaire cessante, à en chercher l’issue.).

Texto n.º4: “A civilização está constantemente a trabalhar contra as promessas da ciência, e enquanto os filósofos estão ocupados a aperfeiçoar abstrações metafísicas e outras inutilidades, o mundo civilizado e bárbaro trabalha incessantemente para a degradação física do globo…” (La Civilisation opère constamment à contresens des promesses de la science et que tandis que les philosophes s’occupent à perfectibiliser les abstractions métaphysiques et autres inutilités, le monde civilisé et barbare travaille incessamment à la dégradation physique du globe.…).

Referências Bibliográficas

Charles Fourier (1772-1837), Détérioration matérielle de la planète, écrit 1820-21, publié après sa mort, en 1847, revue Phalange. https://www.cairn.info/revue-ecorev-2017-1-page-4.htm

Fressoz, Jean-Baptiste, Bonneuil, Christophe : L’événement Anthropocène. La Terre, l’his­toire et nous, Paris, Seuil, 2016.

Fressoz, Jean-Baptiste & Locher, Fabien, Les Révoltes du ciel. Une histoire du changement climatique XVe-XXe siècle, Seuil, 2020.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 22 de março de 2023, p. 32.

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