BENJAMIN CONSTANT NA ARRÁBIDA

A CMTV publicou, recentemente, uma notável reportagem da jornalista Cláudia Rosenbusch, sobre um tema que revela a fragilidade da nossa democracia e o fraco desempenho do império da lei. Trata-se de um estranho conflito movido por uma empresa privada, alegadamente ligada à família Mirpuri, contra instituições públicas, associações cívicas e numerosos cidadãos de Setúbal e concelhos vizinhos. Este caso começa em 2019 com a compra, pela referida empresa, da Herdade da Comenda, por 16 milhões de euros. Trata-se de uma propriedade com cerca de 600 hectares, com descontinuidade entre algumas das suas parcelas, mas toda situada no Parque Natural da Arrábida. O terreno contém também algum património construído, incluindo um magnífico solar, desenhado pelo arquiteto Raul Lino há mais de um século, e a capela de São Luís, edificada no final do século XVII. Lembro-me de que a notícia da aquisição da Comenda por uma família que conta no seu acervo uma fundação, com atividades culturais e de interesse público, criou a expetativa positiva de que os novos proprietários pudessem restaurar e beneficiar os valores naturais e arquitetónicos que ficariam sob sua tutela. Infelizmente, a atitude dos novos donos foi a da ocupação abrupta e ostensiva do terreno, fechando caminhos rurais (até aí usados, para fins recreativos, por ciclistas e caminhantes), erguendo cercas e vedações, destruindo equipamentos pré-existentes que há muito serviam as populações (parque de estacionamento da praia de Albarquel e parque das merendas da Comenda), alterando as margens e o leito de ribeiras, construindo mesmo uma represa, bloqueando o acesso à capela de São Luís, na qual se realiza anualmente uma antiga festa religiosa, ocupação do domínio público rodoviário por pilaretes, redes e correntes, e não estou a ser exaustivo.

A maioria esmagadora destas iniciativas foi tomada de forma ilegal, desrespeitando leis existentes e as autoridades que as tutelam. Entidades como o Município de Setúbal, o PNA, o ICNF, as Infraestruturas de Portugal e a Diocese de Setúbal fizeram diligências, mas outras entidades estão também envolvidas. A atitude do novo proprietário tem sido a da indiferença e mesmo desobediência (como ficou patente na tentativa de bloquear o acesso à capela de São Luís da reportagem da CMTV, apesar da restituição judicial da mesma à diocese). O problema é materialmente grave, pois há riscos para a saúde e o ambiente. Há caminhos corta-fogos que ficaram inoperacionais, as obras efetuadas na berma das estradas aumentam a probabilidade de acidentes, as vedações limitam a circulação da fauna. O principal obstáculo a que a lei e o interesse público não fiquem submersos perante a apatia, o desinteresse e mesmo a cumplicidade daqueles que os deviam defender contra os seus violadores, tem sido a ação persistente e esclarecedora de uma associação cívica defensora da Arrábida e do Sado. Há duzentos anos, o filósofo e político franco-suíço Benjamin Constant antecipava a causa deste caso, tornado hoje em ameaça universal das democracias modernas: “nos nossos dias, os particulares são mais fortes do que os poderes políticos; a riqueza é uma potência mais rapidamente disponível, mais aplicável para todos os interesses, e consequentemente mais real e mais bem obedecida”. O caso da Arrábida não é apenas um exemplo da arrogância dos poderosos perante uma lei que deveria ser igual para todos. É também um perigoso sintoma de doença da nossa república.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 15 de Outubro de 2022

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