BAIXAS E DANOS DA PRIMEIRA VAGA

A guerra pela Ucrânia continua a ser travada sobre um campo de gelo muito fino. Os erros de cálculo, combinados com gestos arriscados, como é o caso de transformação de centrais nucleares em palco de combates, tornam difícil vislumbrar até o futuro imediato. Muito embora não existam dados objectivos suficientes para perceber o verdadeiro plano operacional inicial de Putin, a simples constatação de 15 dias após a ofensiva a situação militar ter entrado numa espécie de pausa, parece indicar que ele subestimou a capacidade de resistência das forças armadas da Ucrânia. Contudo, o facto de uma coluna militar russa de 64 Km se arrastar há muitos dias numa manobra de cerco de Kiev, sem ser importunada pela aviação ucraniana, e de cada vez mais os civis se juntarem à luta, parece indicar que no ar e em terra o primado da iniciativa militar pertence inteiramente à Rússia. A multiplicação de iniciativas diplomáticas, e a clara redução do ritmo da ofensiva, podem significar que Moscovo quer diminuir as suas baixas, mas também evitar precipitar-se numa batalha decisiva por Kiev. Se o quisesse, a Rússia poderia arrasar a capital ucraniana. Todavia, com o permanente fluxo de armas sofisticadas da NATO a chegar aos resistentes, essa batalha seria uma hecatombe sangrenta, transmitida em directo pelas televisões do mundo inteiro. Putin percebe bem, até pela catadupa de sanções, que uma vitória brutal teria a longo prazo um sabor amargo de quase derrota.

Do lado ucraniano, o saldo de dor e destruição é imenso. O final desta primeira vaga, e o facto de a Rússia parecer hesitante em transformar Kiev numa nova Estalinegrado, podem constituir uma oportunidade para poupar à população um sofrimento ainda maior. Será preciso, contudo, abertura diplomática e compromissos com Moscovo, em particular na questão da neutralidade e das regiões do leste do país de maioria russa. Caso contrário, a brutal lógica da força tenderá a prevalecer numa segunda vaga. Do lado ocidental, há custos, para além dos evidentes com os efeitos de boomerang das sanções. Esta guerra parece ter consolidado uma tendência geopolítica global, que se vinha desenhando mesmo antes do conflito. Doravante, no directório mundial, a emergente China terá a seu lado a Rússia. A autocomplacência da política externa de Washington e a abstenção da UE, conseguiram algo que nem nos tempos do comunismo ocorreu: empurrar Moscovo para o regaço de Pequim, numa aliança “sólida como uma rocha”, para citar o MNE chinês.

Mesmo que as armas se calem em breve, o que está longe de ser o mais provável, os danos mais profundos atingem-nos a todos nós, membros desta anárquica comunidade internacional. E não estou a considerar apenas as ondas de choque de uma crise económica, financeira e social, que vai afectar quase toda gente e sobretudo as camadas sociais e as regiões mais vulneráveis. Estou a referir-me também ao modo como esta guerra, travada entre países da linha da frente da hierarquia do sistema internacional, vai desvitalizar e desacreditar a mobilização geral para a única luta que, desde há muito, deveríamos estar a travar, a campanha para salvar o futuro comum. Talvez consigamos evitar, outra vez, a Destruição Mútua Assegurada de uma guerra nuclear, mas estamos mais perto de perder a luta contra a mútua Destruição Ambiental Assegurada.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 12 de Março de 2022, p. 13.

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