ATRAVESSAR O RUBICÃO

O fracasso da versão lusa dos “coletes amarelos” não nos deve impedir de reflectir sobre o significado desse fenómeno francês para o estado actual e perspectivas futuras da doença europeia.

Em 2014, quando as forças populistas tiveram um considerável sucesso nas eleições europeias, particularmente em França, escrevi no DN que a crise europeia tinha entrado numa nova fase. Até aí, tinha prevalecido o regime que designei por “agonia prolongada”: as medidas de austeridade generalizadas a toda a zona euro (ZE), e não apenas aos países com intervenção da “troika”, causavam evidente sofrimento social com a “desvalorização interna” (o empobrecimento, através da redução salarial e do desemprego, como deliberada política pública), mas o sistema político interno a cada país e a nova relação de hierarquia europeia entre países credores e devedores mantinham-se intactos. A agonia prolongada implica a manutenção na ZE de uma absoluta separação entre esfera democrática e esfera decisória. Onde os povos retêm capacidade deliberativa, como é o caso das eleições nacionais, as decisões com poder efectivo são cada vez mais diminutas, como se viu pela queda imposta do governo grego de Papandreou e italiano de Berlusconi em 2011. Pelo contrário, onde na Europa existe poder real (BCE, directório no Conselho Europeu, novas competências de controlo sobre os orçamentos nacionais por parte da Comissão Europeia) estamos na presença de uma operação funcional que dispensa qualquer respaldo democrático. O regime de austeridade perpétua do Tratado Orçamental de 2013 aprofundou o sentimento de impotência e de desorientação políticas, que é a verdadeira causa do populismo. Não existindo qualquer relação directa entre o cidadão individual e o sistema de poder efectivo europeu, toda a tensão foi desviada contra os respectivos governos nacionais, conduzindo a sucessivas vitórias populistas-nacionalistas.

Sublinho esta ideia central: a doença europeia não se chama populismo. Este é apenas o sinal febril de uma patologia que estava latente no desenho do euro, mas que foi conduzida ao estatuto de doença degenerativa pela chanceler Merkel e os seus sucessivos auxiliares franceses. Essa doença tem como sintoma crucial a permanente e explosiva colisão entre federalismo monetário incompleto e nacionalismo orçamental e fiscal. No fundo, o actual desenho do euro acaba por promover a competição desenfreada nos impostos, a insularidade orçamental, a divergência económica crescente entre países, e a desigualdade entre sectores sociais dentro dos países.

A política dos partidos que se afirmam pró-europeus foi a de tentar manter o status quo, deixando a iniciativa política aos partidos populistas que procuram dar uma resposta grosseira e simplista à delicada e complexa situação europeia. A resposta de Macron ao protesto violento dos “coletes amarelos”, atirando esmolas aos pobres, em vez de explicar e lutar pelas reformas europeias de que se julgou ser o indómito campeão, foi medrosa e demagógica. Cresce a impressão de que esta Europa sem rumo, com cada pátria, região, classe e partido acantonado nas suas trincheiras, está cada vez mais perto de repetir a sua mais habitual coreografia histórica. O momento de explosivo cansaço em que a violência bruta, fragmentar e imprevisível pode pretender substituir os argumentos racionais no combate à agonia que vai asfixiando a Europa.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado originalmente no Diário de Notícias, na edição de 23 de Dezembro de 2018, p. 20.

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