O fracasso público e notório do glamoroso projecto Human Brain Project (HBP), iniciado em 2013, com um generoso financiamento de mil milhões de euros da União Europeia, continua a produzir ondas de choque. O HBP foi liderado pelo neurocientista Henry Markram (1962), até ao seu afastamento em 2016. Markram recebe agora as duras críticas por parte dos muitos cientistas que, quando convidados aceitaram alegremente colaborar com ele. Transformar o antigo líder num bode expiatório não serve de desculpa para esconder o modo como os financiadores, a comunidade científica, e o público em geral, aceitaram um projecto que pretendia em dez anos efectuar uma simulação rigorosa do cérebro, replicando a sua complexa cartografia e os seus milhares de milhões de conexões. Pura e simplesmente, como agora alguns dos desiludidos cientistas afirmam, o estado da arte actual dos conhecimentos do cérebro não permite uma tal façanha. Isso, contudo, já se conhecia em 2013…A história do HBP é um exemplo recente do modo como a sociedade contemporânea transferiu para a aliança entre a ciência e a técnica – transformada em tecnociência, uma criatura nova e exclusiva da Modernidade – as expectativas de milagres antes solicitadas às religiões. Infelizmente, não faltam cientistas que não se importam de assumir o papel de sacerdotes da nova Revelação.
Neste tempo pandémico, a tecnociência entrou definitivamente nas categorias do folclore ideológico e cultural. Lentamente, torna-se visível a distância entre o tom eufórico com que se exalta a inventividade inesgotável do génio tecnocientífico, e a magreza preocupante dos resultados práticos. Felizmente, como ocorre com as Ciências da Terra, vemos erguerem-se nas fileiras da Academia vozes respeitadas e sábias que não perderam a prudência ética nem o sentido crítico dos limites do próprio conhecimento humano. Vozes que chamam as coisas pelos seus nomes. Cientistas que se recusam a aceitar que a sua profissão/vocação entre na galeria dos novos ídolos, que Nietzsche, nos anos de 1880, considerava como inevitáveis candidatos a ocuparem o imenso vazio espiritual criado pelo niilismo, essa nova, imensa e desafiante paisagem histórica provocada pelo eclipse do milenar Deus cristão.
Quem tenha vivido e acompanhado com paixão, como o autor destas linhas, os avanços do Programa Appollo (1961-1972), com as suas missões tripuladas, que terminaram em 19 de Dezembro de 1972 com a missão Apollo 17, não pode deixar de sentir repugnância com a moeda falsa que por aí circula, disfarçada de ciência. Já nem me refiro aos golpes publicitários de Elon Musk, que quer enviar os primeiros colonos para Marte. Musk é um homem de negócios da sociedade espectáculo, e por isso nada há a esperar dele em matéria de rigor e verdade objectiva. Refiro-me sim a cientistas que flutuam acima da terra. Gente de ciência, brilhante no cálculo, mas que parece ter perdido o mínimo senso comum. Michio Kaku (1947) é um desses físicos que se tornaram futurólogos. Ele tornou-se o herdeiro da teoria das civilizações cósmicas do astrofísico russo, Nicolai Kardashev (1932-2019). De acordo com essa teoria, formulada num artigo de 1964 (“Transmissão de Informação por Civilizações Extraterrestres”) especula-se sobre a existência de três tipos de civilizações no Universo: a) a “civilização planetária” (Tipo I), que é capaz de usar toda a energia disponível num planeta (que ele estima em 1016 watts; b) a “civilização estelar” (Tipo II), que seria capaz de gerir a energia de um inteiro sistema solar (cerca de 1026 watts); c) a “civilização galáctica” (Tipo III), que seria capaz de agregar a energia disponível numa galáxia inteira (1036 watts). Michio Kaku acredita que num horizonte de 100 anos estaremos a caminho de uma Civilização de Tipo I, embora não nos ensine nada sobre o modo como é que poderemos lá chegar, atolados que estamos no actual pandemónio de um sistema político internacional, altamente tribalizado e dependente de fontes energéticas, como o carvão e o petróleo, tão primitivas como nefastas para o equilíbrio ambiental da Terra e hostis para a própria possibilidade de sobrevivência física da espécie humana. Será possível construir um sistema internacional de cooperação compulsória, leal e duradoura, quando Trump, Bolsonaro, Putin, e outros, juntam à sua iliteracia científica face à crise ambiental e climática a transformação do terrorismo num instrumento habitual da política externa?
Aliás, suspeito bastante de que uma das características dos futurologistas e visionários do êxodo espacial é o seu escapismo psicológico em relação aos problemas – apesar de infinitamente mais simples de resolver do que a navegação para planetas situados a anos-luz – que nos impedem de habitar com decência, justiça e higiene a nossa casa terrestre, em vez de a devorarmos e poluirmos, como se estivéssemos de passagem. Um exemplo muito claro dessa atitude, é a obra, na altura muito aclamada, de Gerard K. O’Neill (1927-1992), Alta Fronteira: Colónias Humanas no Espaço (1976), onde era proposto ao governo dos EUA uma espécie de edição tonificada e elevada ao cubo do Programa Appollo, desta vez visando a colonização permanente, embora gradual, do nosso sistema solar. Não deixa de ser interessante notar, que o seu autor não deixa de acusar a mudança de mentalidade provocada por obras que lhe eram contemporâneas, nomeadamente, Os Limites do Crescimento (1972), onde uma nova consciência da crise ambiental se consolidava.
Os fantasistas da tecnociência fazem parte dos sinais culturais de desagregação da nossa civilização, marcada pela angústia crescente da crise ambiental e climática. Uma civilização marcada pelo anátema do crescimento exponencial da energia e da entropia a qualquer custo, dilacerada pela encruzilhada histórica inadiável onde se decidirá se temos coragem colectiva suficiente para enfrentar a crise, mudando profundamente o modo como habitamos o planeta, com reformas que vão até à raiz do contrato social e da maquinaria do sistema económico. Ou se, pelo contrário, continuaremos em frente, ignorando os factos, negando as evidências, incapazes da menor mudança de rumo, até mergulharmos num colapso irreversível. Com consciência, ou talvez não, aqueles que se refugiam no febril embarcar nas caravelas do céu, em fuga rumo aos desertos inabitáveis do espaço exterior infinito, sem sentir o espontâneo pavor “pelo silêncio” sideral de que nos fala Pascal, são os idiotas úteis dos industriais e militantes do colapso, que continuam a governar o mundo.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras de 30 de Dezembro 2020 pág. 28-29
Os triliões de dólares/euros/libras/etc que “desapareceram” na Crise Financeira Global (GFC) foram parar aos bancos de investimento e estão agora a financiar os projetos concebidos pelas elites, para dar forma áquilo que chamam o “grande reset”.
Os projetos – apelidados de “unicórnios” – estão por todo o lado e têm nomes mais ou menos conhecidos (facebook, uber ou tesla, por exemplo, entre os mais conhecidos).
São aquilo que a elite idealizou para a futura economia, a economia pós “great-reset”.
Têm uma característica comum: todos eles estão a perder biliões de dólares/euros, mas dinheiro não é, por enquanto, grande problema, já que os financiadores assumiram perdas iniciais como inevitáveis e, além disso, sempre puderam contar com os governos ocidentais para garantir o delírio (a começar no roubo de 2008-2012).
O delírio já chegou à China, embora o governo Chinês tenha carregado a fundo no pedal do travão, quando em outubro passado a Ant Group Co de Jack Ma se preparava para lançar uma oferta pública inicial de 35 biliões de $, que o ia transformar no homem mais rico da China (o governo Chinês parece que não quer a economia dominada por oligarcas, o que é uma questão engraçada para colocar aos adeptos dos “estados pequeninos”).
Alguns dos projetos do “great reset” já foram atirados para o caixote do lixo, por evidente falta de correspondência com a realidade mas, por razões de credibilidade do sistema, só os unicórnios menos conhecidos poderão ser reciclados.
A UE tem a mania que é superior aos EUA e China e, como tal, faz tudo por inovar na inovação.
O modelo é o mesmo (investir nos projetos “inovadores” com quantidades colossais de dinheiro) e esperar que daí nasçam as futuras inovações tecnológicas que vão sustentar a futura economia.
Mas, o trabalho duro, a investigação, o ensino, foram todos substituídos por simulacros de trabalho, simulacros de investigação, simulacros de ensino.
Vivemos numa época de vale tudo.
Acreditemos que será passageiro.
Se olharmos para a evolução da humanidade a longo prazo, há motivos de esperança: pese embora a sociedade tribal, depois veio a sociedade organizada; pese embora a idade média, depois veio o renascimento; pese embora o absolutismo, depois veio o liberalismo.
Mas está na hora de substituir o liberalismo.
Houve uma tentativa de o substituir, o socialismo, mas o este foi assassinado quer pela esquerda (comunismo, que depois descambou no estalinismo), quer pela direita (a terceira via).
Mas a humanidade não tem opção senão substituir o liberalismo/capitalismo…
Quanto tempo vai levar a fazer a transição?
E qual o modelo económico que o vai substituir?
Essas são as grandes questões da humanidade.