AS AREIAS QUE SOPRAM DO FUTURO

Enquanto os tambores de guerra continuam a ensurdecer o pouco de racionalidade e de espírito crítico que sobra nesta velha Europa, indiferente, conformada e moralmente envelhecida, as areias dos grandes desertos africanos, com um diâmetro tão fino que entram pelos pulmões adentro, já migraram, sem necessidade de documentação, para as latitudes de Portugal, Espanha e Europa do Sul. Juntamente com as secas crónicas, a rotina das ondas de calor, as cheias súbitas, os minitornados imprevisíveis…E é apenas o princípio das alterações climáticas. Um novo normal, em crescimento e agravamento exponencial. A crise global do ambiente e clima deverá estar em sinistro ponto de rebuçado lá para 2040, quando os primeiros aviões começarem a aterrar no novo aeroporto de Lisboa. Será um elefante tão alvo, que dispensará qualquer comentário para além do silêncio, e da vergonha, que apenas alguns sentirão. Nessa altura, o número de dias em que ninguém sairá à rua, sob pena de colocar a sua saúde em risco, deverá ter aumentado significativamente, em proporção direta com a perda de praias no litoral, devido à combinação entre erosão costeira e subida do nível médio do mar. Nos oceanos, os plásticos continuarão a subida inexorável até ao ponto em que o seu peso ultrapassará o do total de todas as criaturas marinhas. Então, já teremos as minas de lítio, promovidas por grande empresas e fundos de investimentos, a mais de meio do seu ciclo de vida. Para as abrir e proteger, as forças de segurança aquartelarão efetivos nas aldeias transmontanas, entre outras, para garantir que os protestos não se transformam em resistência ativa. Lugares inteiros serão varridos do mapa. Desta vez não pela atração das capitais, mas pela repressão do capital. Aquele que foi durante mais de quinhentos anos um império colonial, experimentará a amargura da maldição dos recursos naturais. Seremos uma neocolónia dos figurões da nova ordem internacional. Solos aráveis terão ficado irremediavelmente perdidos. Ribeiros e lençóis freáticos contaminados. Paisagens desenhadas e mantidas por séculos de labor humano terão sido devastadas pela mineração implacável. Nichos de biodiversidade perderão a massa crítica mínima, e onde antes verdejava e cantavam as aves, ficará o sulco sombrio deixado pelas máquinas na terra árida e na pedra nua. E para quê? Para a “transição energética”? Para o “crescimento verde”? É provável que essa Novilíngua, que usurpou, pirateou e intoxicou preocupações reais defendidas por gente séria, já tenha sufocado na sua própria nulidade. Outro linguajar será forjado, mas sem grande imaginação nem despesa. Em 2050, em vez da miragem da neutralidade carbónica, a OCDE antecipa, para o cenário realista de tudo seguir como de costume, uma concentração infernal de 685 ppmv de CO2 na atmosfera. Quando o futuro talvez seja pouco mais do que chegar ao dia seguinte, a propaganda dispensa sofisticação.

Permitam-me os leitores uma ironia amarga no final. Congratulo-me com o apoio certo do novo governo português à continuidade de Ursula von der Leyen à frente da CE. Estou seguro de que o rasto de irregularidades, zonas de sombra e abusos de poder da sua longa vida pública, não serão um obstáculo à sua reeleição. É a líder adequada de uma UE, que cada vez mais se assemelha a uma loja em fase de liquidação total. Se entramos em guerra direta com a Rússia, é até possível que sejamos poupados a um longo e inútil sofrimento.

Soromenho-Marques, Viriato, “As Areias que sopram do Futuro”, Diário de Notícias,13 de abril de 2024, página 11.

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