ANTERO VOLTOU A TER RAZÃO

A prudência e o método que explicaram o sucesso português na fase inicial de expansão da COVID-19, parecem ter sido abandonados. Com excepção da Madeira e dos Açores, o desconfinamento continua a derrapar. Esse insucesso, que nos coloca agora nos piores lugares europeus em número de novas infecções, não aconteceu sem causas compreensíveis. Todos os dias se conhecem algumas delas. Desde a falta de coordenação entre as diferentes bases de dados, até ao modelo de gestão da crise que parece ter deixado de fora gente e instituições que fariam falta dentro. Parece também evidente que o problema da gestão dos transportes públicos nas periferias da Grande Lisboa (LVT) não foi devidamente acautelado. 

Contudo, talvez mais do que os erros, aquilo que me parece perigoso é a persistência na atitude que os provocou e que, a não ser alterada, pode constituir um factor para a sua persistência e até agravamento. Mesmo antes do desconfinamento, a condução política do processo de combate à pandemia ao mais alto nível, incluindo o PM e o Presidente da República, foi contaminada pelo “optimismo irritante”, que o último censurara, há vários anos, ao primeiro. O facilitismo, já patente nos últimos dias de Abril, generalizou-se aos responsáveis de topo e aos detentores da palavra oficial e de muito do comentário influente. Não é preciso ser um psicólogo social para perceber que as elites modelam mais os comportamentos dos povos pelas atitudes do que pelo conteúdo manifesto das mensagens que as acompanham. O auge da euforia descabida foi atingido pela vinda celebrada de uma final europeia de futebol para Lisboa, na base de uma medíocre análise de custo-benefício. O erro de pensar a economia e a saúde em pé de igualdade paga-se caro. A saúde deve estar sempre primeiro até para benefício da economia, como é confirmado pela perda temporária da procura turística britânica. Mas, em vez de se reconhecerem os erros cometidos e a objectividade do indicador sanitário usado por Londres, foi desencadeada uma campanha hostil, misturando alhos com bugalhos, contra a decisão de Downing Street. Recordei-me, por isso, da anglofobia patriótica aquando do Ultimato de 1890. Certamente por engano, alguns exaltados ofereceram ao respeitadíssimo Antero de Quental a presidência da Liga Patriótica do Norte, para dar um lustro inteligente à vociferação contra a “pérfida Albion”. Antero escreveu um breve Manifesto onde se podia ler: “O nosso maior inimigo não é o inglês, somos nós mesmos. Só um falso patriotismo, falso e criminosamente vaidoso, pode afirmar o contrário (…) Não é com canhões que havemos de afirmar a nossa vitalidade nacional, mas com perseverantes esforços da inteligência e da vontade, com trabalho, estudo e rectidão.” (AQ, Expiação, 1890, 353). A Liga acabou ali mesmo. Infelizmente, para quem não ignore os enormes riscos deste Verão apenas começado, as qualidades que Antero recomendava ao país têm-nos dado campeões de ouro no desporto, nas ciências e nas artes. Na política, contudo, é o latão que predomina.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado originalmente no Diário de noticias edição de 11 de Julho de 2020

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Paulo Rodrigues

O descalabro está em progressão geométrica, como o provam os festejos da vitória do FCP no campeonato de futebol.
Não teria sido preferível anular o campeonato de 2019/20, ou atribuir o título com base na classificação à data da suspensão dos jogos?
Afinal, a classificação seria a mesma.