Sabemos que a raiz da crise climática global é a nossa dependência dos combustíveis fósseis. Mais difícil é compreender como até agora não conseguimos encontrar uma estratégia comum para debelar esse perigo que ameaça devorar o futuro comum. Parecemos estar hipnotizados pela trajectória de um asteróide em rota de colisão com a Terra, sem nada fazer para a evitar. Talvez porque esse asteróide vem de dentro da civilização: do egoísmo das elites económicas, da impotência dos sistemas políticos e da fragilidade moral dos indivíduos.
Uma gravidade crescente
Foi em 1896 que Svante Arrhenius – Nobel da Química em 1903 – publicou o seu artigo pioneiro sobre a possibilidade do rápido crescimento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera, em virtude da revolução industrial, poder conduzir ao aumento da temperatura média do planeta até 6º C. O que parecia uma mera hipótese científica, projectada para séculos longínquos, transformou-se hoje num perigo global e iminente. As alterações climáticas (AC) constituem a principal ameaça existencial à frágil arquitectura ecológica que, ao longo de milhões de anos, transformou a Terra no único planeta conhecido do Universo albergando uma biosfera exuberante, capaz de permitir o florescimento da complexa civilização humana.
Desde 1988, quando foi criado o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), que os relatórios publicados revelam uma gravidade crescente dos impactos. Enquanto a profunda crise da biodiversidade escapa à maioria da população mundial, fortemente urbanizada, as AC já fazem parte da experiência quotidiana através das ondas de calor, das secas agudas, das chuvas torrenciais, dos furacões, dos incêndios devastadores, como os do Verão português de 2017.
As AC são um fenómeno complexo e global. As emissões de gases de efeito de estufa de qualquer país têm impacto em todo o planeta. Estudos recentes revelam que a temperatura média já aumentou 1,1ºC em relação ao período pré-industrial (sendo que na região mediterrânica esse aumento foi já de 1,5ºC). Por outro lado, um relatório de Setembro do IPCC sobre os Oceanos e a Criosfera (as áreas permanentemente geladas) mostrava como essas duas dimensões críticas do Sistema Terra estão a revelar vulnerabilidades, que aceleraram de modo vertiginoso e não linear as AC. Num artigo publicado pela Academia das Ciências dos EUA estima-se que o actual e rápido degelo no Árctico, e em muitos outros lugares, poderá levar a uma subida do nível médio do mar (NMM) em 2 m (até 2100) e 7,5 m (até 2200). Na verdade, tudo indica que muitas das consequências das AC funcionam como retroacções positivas, aumentando ainda mais a intensidade dos efeitos. As Forças Armadas dos EUA, apesar de Trump, publicaram um estudo, onde se propõe uma profunda revisão tanto da doutrina como dos meios militares em função dos novos desafios, internos e internacionais, provocados pelas AC (US Army War College, Implications of Climate Change for the U.S. Army).
O que é necessário fazer
O completo fracasso da conferência de Madrid (COP25) revela bem como estamos longe da redução de 50% das emissões até 2030, necessária para evitar o pior. Pelo contrário, entre o ano da criação do IPCC (1988) e 2019 as concentrações de CO2 na atmosfera aumentaram tanto como no período entre 1860 e 1988: 286 ppm em 1860; 350 ppm em 1988; 415 ppm em 2019…
O nosso conhecimento científico do processo das AC não teve até agora eficácia prática. As causas do problema continuam a aumentar aceleradamente, enquanto as “respostas” primam pela vacuidade ou timidez. Que poderemos fazer? Em primeiro lugar, urge estabelecer uma adequada hierarquia de prioridades. Importa reconhecer que a soma dos comportamentos individuais, sem ser de negligenciar, é muito inferior ao papel das boas políticas públicas. Os cidadãos não podem ser responsabilizados pela incompetência dos Estados na incapacidade de promoverem medidas que impulsionem a transição energética das fontes fósseis para as renováveis, que estimulem o transporte público, que aliviem fiscalmente a agricultura, a silvicultura e a pecuária sustentáveis, que defendam firmemente os solos aráveis e os ecossistemas protegidos, incluindo os marinhos.
Em segundo lugar, é inegável que a força motriz tanto do problema como das eventuais respostas adequadas é a economia. Temos uma prova disso pela negativa: no último meio século identificamos apenas quatro períodos em que se registou uma redução anual das emissões de CO2: 1973-74/-2,4% (1.ª crise do petróleo); 1979-1980/ -0,4% (2.ª crise do petróleo); 1997-2000/-3,5 % (crises das economias asiáticas e das empresas digitais); 2007-2008/-2% (crash do sub-prime). Se quisermos que esta redução seja feita pela positiva, sem ruptura social, ela terá de ser articulada por políticas públicas que invistam os subsídios gigantescos dados aos combustíveis fósseis (cerca de 6,5% do PIB mundial em 2017, de acordo com o FMI) nas energias renováveis e na investigação, desenvolvimento e implementação de tecnologias e empresas que contribuam para a descarbonização da economia. Mas para isso, a política tem de voltar a ser capaz de se impor aos mercados, com a lógica da prioridade do interesse público, em vez de ser a mera correia de transmissão das elites corporativas globais, como se tornou visível desde a década de 1980.
Por fim, a escala da política tem de estar à altura da escala do problema. Tanto na mitigação como na adaptação às AC. Os países que se coloquem à margem dos acordos climáticos internacionais, devem ser alvo de sanções económicas e comerciais. O tempo urge! As cimeiras do clima, em vez de exercícios sucessivamente frustrantes, devem ser lugares onde sejam dados passos firmes para vencer a guerra mundial pelo direito ao futuro.
Viriato Soromenho-Marques
(Catedrático de Filosofia da Universidade de Lisboa)
29 de Dezembro de 2019. “Alterações Climáticas. A Guerra pelo Direito ao Futuro”, Edição Especial 2019 do suplemento «Domingo» do Correio da Manhã, pp. 66-69.