O que surpreende ao contemplar as pinturas rupestres de Altamira é o imediato elo de proximidade que se estabelece entre o observador actual e os seus criadores, que nelas sobrevivem, passados tantos milénios. As pinturas transportam-nos para o mundo desaparecido da última idade do gelo, para jogos de vida e morte entre grandes herbívoros e ágeis caçadores. Nas longas noites de inverno em cavernas, com 4 ou 5 ºC de temperatura média abaixo da actual, junto a fogueiras que não era conveniente deixar extinguir, esses artistas anónimos perpetuaram nas paredes a sua cosmovisão. Mais do que pintura decorativa, esses são testemunhos pungentes – já burilados da emoção bruta pela mediação da representação – do milagre da existência.
Lembrei-me dos pintores de Altamira a propósito de um notável e brevíssimo vídeo a que o leitor poderá também aceder através de um motor de busca (The Walls of the WTO). Trata-se do resultado de uma invulgar colaboração entre o realizador Ryan S. Jeffery e o historiador económico Quinn Slobodian, autor de um notável livro sobre o pensamento neoliberal e a globalização, publicado em 2018, Globalists. No mundo de hoje, a economia transformou-se no grande mito unificador, não desta ou daquela tribo ou povo, mas da humanidade inteira. Contudo, um mito com clivagens, e narrativas sobrepostas, mesmo contraditórias. Em dez minutos, o vídeo sintetiza o século mais vertiginoso da história através de uma visita à arte decorativa do Centro William Rappard, o edifício junto ao lago Genebra, onde em 1919, numa Europa a sair esperançada da I Guerra Mundial, foi instalada a sede da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Como claro sinal da metamorfose filosófica ocorrida na economia mundial, em 1977, o edifício seria ocupado pelo GATT, que evoluiu para a actual Organização Mundial de Comércio (OMC). A arte decorativa, no tempo da OIT, transbordava de grandes pinturas – na maioria dos casos ofertadas por confederações sindicais – exaltando o trabalho humano, mas também momentos de lazer e de contemplação da beleza. Com a chegada da OMC, a maioria destas obras foram retiradas, arquivadas, ou simplesmente perdidas. No seu lugar surgiram representações centradas nos objectos, nas mercadorias, com a completa ausência de motivos antropomórficos. Particularmente reveladora é uma sequência de telas, representando, através de grelhas cada mais atomizadas, como redes de pixéis, a marcha da geografia do comércio mundial. A última tela é um quadrado completamente em branco, comentado por Slobodian com a seguinte frase: “comércio até que o mundo desapareça”…No exterior do edifício, numa pequena rotunda, ergue-se uma estátua com trabalhadores em postura séria e firme, erigida nos anos da Grande Depressão: Na base lê-se um texto em francês que reza o seguinte: “O trabalho deve ser colocado acima de todas as lutas de concorrência. Ele não é uma mercadoria”. Por um melancólico momento, sentimos que essa frase parece ainda mais longínqua do que as pinturas dos caçadores-recolectores de Altamira.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado na edição do Diário de Notícias de dia 7 de Setembro de 2019