A OMS anunciou o óbvio. A Europa transformou-se hoje na maior ameaça sanitária mundial. O que nos está a acontecer com a progressão exponencial de Covid-19 na Europa, e a partir dela para África, só deve permitir-nos palavras que tenham passado o filtro da meditação e o teste do silêncio. A pandemia desperta reacções febris, para além daquelas que são mensuráveis pelo termómetro. Como um buraco negro, ela tudo atrai e tritura na fornalha do seu núcleo de dor e nulificação. A primeira lição que devemos resgatar deste pesadelo é a de que ele tem de ser vivido frontalmente. Não podemos fechar os olhos e acordar no final, como quem desperta de uma anestesia. Comecei a escrever depois da tardia declaração do estado de emergência. Já nada parece poder impedir que no final de Março, no nosso país, os infectados sejam dezenas de milhares, enquanto os mortos se contem por muitas centenas. Tal como numa guerra, em que os feridos causam mais transtorno para os exércitos do que os mortos em combate, parece inevitável que, por essa altura, os nossos hospitais mergulhem no estado de entropia em que a Itália agoniza hoje, apesar da heroicidade de médicos e enfermeiros, que pagam com a sua saúde uma década de descapitalização do SNS. A segunda lição que os sobreviventes desta crise maior depois de 1945 deverão guardar no granito mais sólido da sua memória, para o dia seguinte ao pesadelo, é que a pior coisa que poderia suceder seria retomar a “normalidade”. A anatomia desta crise não pode ser dispensada, nem os seus resultados deitados fora depois, como sucedeu à crise financeira global de 2008 e ao debilitar do Estado social pela austeridade, como insensata resposta europeia.
Há imagens que emudecem a voz. A chegada a Itália, vinda da China, de uma equipa de médicos experientes, com ventiladores para doentes críticos, é um imperativo dedo de acusação ao novo fracasso, sem apelo nem agravo, da União Europeia. A Itália foi deixada sozinha a enfrentar a epidemia. António Costa disse à SIC que Portugal e a Espanha foram os únicos países da UE que não cerraram as fronteiras unilateralmente! Vinte e sete egoísmos nacionais sobram para semear a desordem, mas não chegam para fazer uma união que crie poder e benefícios para todos. Desde Dezembro de 2019, a Comissão Europeia e os Estados-membros limitaram-se a olhar para a tempestade que se acumulava a Oriente. Do mesmo modo como a UE não estava capacitada para enfrentar a crise financeira global iniciada em 2008, também nada tem a oferecer, hoje, para proteger a saúde pública dos europeus. Na verdade, se a UE tivesse as suas fronteiras ainda a funcionar, como antes de 1995, a pandemia teria muito menor impacto. No final deste túnel, que é de pandemia, mas também de pandemónio, quando a dívida pública europeia global acumulada rebentar o bezerro de ouro do tratado orçamental, teremos de ajustar contas com esta união que, em vez de nos acrescentar, nos diminui. Se não construirmos uma união política e económica a sério, então a UE será a maior vítima mortal do Covid-19.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no “Diário de Notícias” de 21 de Março de 2020, p. 29.