A 27.ª CONFERÊNCIA das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas vai realizar-se na famosa estância turística do Egipto de Sharm el Scheik, entre 6 e 18 de novembro, apesar do mundo estar mergulhado numa guerra, onde se disputam mercados, preços e relações de vassalagem entre produtores e consumidores de combustíveis fósseis. A UE abandonou o Pacto Ecológico sem sequer verter uma lágrima. E agora vale tudo o que possa aquecer no próximo Inverno: mais carvão, mais petróleo, gás natural de toda e qualquer origem. Na Alemanha, que representa a total subordinação europeia ao braço musculado de Washington, até se prolonga a vida de reatores nucleares que há muito deveriam ter sido fechados. E na Suécia, sem rebuço, o novo governo coloca a política ambiental sob supervisão do Ministério da Indústria e Energia. A servidão voluntária europeia é tão perfeita que já ninguém se interessa em saber o resultado das investigações sobre os atos terroristas de sabotagem dos gasodutos Norstream 1 e 2. As manifestações de descontentamento popular multiplicam-se por França, Itália, Alemanha, mas, em 13 de outubro, numa conferência em Bruges, na inauguração da nova Academia Diplomática Europeia, Josep Borrell, o Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança (uma designação tão longa como o cargo é vazio de real conteúdo) levantou uma merecida onda indignação quando comparou a UE a um jardim e o resto do mundo a uma selva, pronta a invadi-lo… Para quem desempenha desde 2019 uma função que poderia ter ajudado a evitar diplomaticamente a guerra que hoje ameaça o planeta, esta sua gutural manifestação da supremacia europeia, de tonalidades racistas e neocolonialistas, confirma como é verdadeira a impressão de que na maioria dos altos quadros europeus, de nomeação estrita e diretamente política, são colocados muitos dos mais incompetentes protagonistas das políticas nacionais.
Entretanto, voltando às alterações climáticas, todos os relatórios que se multiplicam revelam o agravamento da situação global. O objetivo de estabilizar no final do século, em “apenas” + 1,5ºC o aumento médio global da temperatura de superfície da Terra (solos e oceanos), está completamente perdido, como sempre os observadores honestos o disseram. Hoje já temos +1,1ºC em relação ao período de referência (1880-1900). E dentro de 28 anos, em 2050 deveremos atingir entre + 2,2 e 2,3 ºC. Quem poderá criticar os jovens nos seus justíssimos protestos contra o egoísmo dos adultos que governam a pensar apenas no seu umbigo? Nascer hoje no mundo, não é chegar a uma casa segura, mas antes ser lançado nas ondas de um naufrágio em marcha inexorável.
SE O ESTADO do clima não se recomenda, o estado da biodiversidade não lhe fica atrás. A WWF (World Wide Fund for Nature), no âmbito de um vasto estudo sobre a evolução da diversidade biológica no planeta entre 1970 e 2018, publicou um artigo na revista Nature. As conclusões são preocupantes, mas só os distraídos podem ficar surpreendidos. Nesse período de 48 anos perdeu-se a nível global 69% da fauna selvagem (da sua biomassa), com um declínio catastrófico de 94% na América Latina e Caraíbas. Também se registam grandes perdas em África (55%) e na Ásia-Pacífico (66%). Apenas 37% do curso dos rios com mais de 1 000 Km de comprimento não está perturbado por grandes obras hidráulicas, o que se reflete na diminuição da biodiversidade fluvial. O grande desafio reside na difícil articulação entre a produção de alimentos e a preservação dos habitats que garantem a sobrevivência da biodiversidade. Até agora, em vez de compromisso, temos a permanente derrota da biodiversidade.
NO RECENTE CONGRESSO do Partido Comunista Chinês, o Financial Times chamou a atenção para uma mudança profunda na orientação do governo de Xi Jinping em matéria de política agrícola. Os empresários privados produtores de flores e outras plantas de elevado valor comercial no mercado internacional foram intimados por Beijing a mudar radicalmente a sua atividade para a produção de cereais e outras espécies de valor alimentar. A China prepara-se para a nova ordem internacional em que a globalização irá encolher e um novo muro irá separar a Europa e os EUA de parte substancial do resto do mundo. A lógica de mercado terá de ser substituída pela lógica estratégica do robustecimento da soberania alimentar, para um futuro marcado por sucessivas ruturas no comércio de alimentos. Lembrei-me deste nosso Portugal de 2022, o país que entregou vastas áreas agrícolas à agroquímica intensiva promovida por fundos de capital de risco, sem rosto, servidos por trabalhadores asiáticos, labotando em condições de semiescravatura. Quando o mercado interno europeu agrícola deixar de funcionar, não faltarão aos portugueses mirtilos e abacates para matar a fome e desculpar a incompetência estrutural de quem nos governa.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, em 2 de novembro de 2022, p. 30.