A SEGUNDA DERROTA DE JEAN MONNET

A passagem de mais um Dia da Europa, num cenário de guerra e incerteza, fez-me regressar a dois livros que publiquei, respetivamente em 2014 e 2019, sobre aquilo que designei como a “queda da Europa”. A minha tese consistia, no essencial, em mostrar como a política de austeridade, imposta pela liderança hegemónica da chanceler Merkel sobre a zona euro, era um erro económico e uma tragédia política para o futuro europeu. Nesses anos, revisitei muitas vezes as lúcidas páginas das Memórias (1976) de Jean Monnet (1888-1979), o mais importante fundador da arquitetura europeia que hoje atravessa a sua hora mais perigosa. Na reconstrução europeia, após a II GM, tendo como núcleo a superação da hostilidade entre França e Alemanha, Monnet antevia a possibilidade de um federalismo europeu, capaz de neutralizar a virulência dos nacionalismos belicosos que por duas vezes destruíram o Velho Continente. Contudo, Monnet não alimentava qualquer esperança no advento de líderes carismáticos europeus. A sua aposta estava depositada, apenas, nesse espírito de autossobrevivência que costuma despontar nos seres humanos quando estão à beira do abismo. O “federador” europeu seria, por isso, a “necessidade”, essa “potência abstrata, multiforme, que se impõe a todos os homens”. Pelo contrário, no auge da crise do euro, não era difícil verificar que o remédio encontrado para evitar o colapso da UEM, não seria mais do que uma panaceia. A gestão de Draghi transferiu para o BCE o papel de estabilizador dos choques assimétricos sobre os Estados-membros, tarefa que deveria pertencer a um verdadeiro orçamento federal da zona euro, que Berlim e seus aliados sempre se recusaram a construir. Durante anos, o remendo funcionou, mas agora a ilusão está a desfazer-se. O apoio do BCE à capacidade de endividamento dos Estados está a fechar-se. As taxas de juro aumentam sucessivamente. As regras da “disciplina orçamental” estão a regressar. A UE está prestes a fazer o casamento (im) perfeito entre o pior de dois mundos: alta inflação que varre o poder de compra; juros altos que eliminam as poupanças das classes médias, antecipando o regresso da austeridade que enfraquece as políticas públicas.

Mas a mais brutal derrota de Monnet está bem à vista na ocorrência e consequências da invasão russa da Ucrânia. Entre 1951 e 1954, Monnet dedicou-se de alma e coração à concretização do projeto contido no Tratado da Comunidade Europeia de Defesa (CED). Este Tratado seria articulado com o Tratado da Comunidade Política Europeia (CPE), conferindo uma legitimidade constitucional e republicana a um braço armado europeu. Nas suas conversas com Eisenhower (que foi o primeiro comandante da OTAN, antes de se tornar presidente dos EUA), Monnet obteve a confirmação do apoio dos EUA às FFAA europeias para além do quadro da OTAN. Perante o adensar da guerra-fria, a construção de um instrumento militar europeu era um precioso auxiliar para Washington face à URSS. Para Monnet, as FFAA europeias correspondiam a uma resposta progressiva ao repto da “necessidade”. A partilha de soberania ao nível da nevrálgica área da Defesa, entre os primeiros seis Estados da unidade europeia, iria dar um impulso à criação de um verdadeiro federalismo político de base democrática. Para Monnet, a “necessidade” transformava-se em oportunidade. Por isso, no artigo 38º do Tratado da CED, estipulava-se “a criação de uma Assembleia da Comunidade Europeia de Defesa, eleita democraticamente.” Esta Assembleia parlamentar seria o embrião de uma “estrutura federal ou confederal definitiva, baseada no princípio da separação de poderes e incluindo, nomeadamente, um sistema representativo bicameral”. Depois de aprovada em cinco países, a CED falharia em agosto de 1954 no Parlamento francês, mercê da aliança entre gaulistas e comunistas.

Nos 68 anos entre 1954 e o começo da guerra na Ucrânia, a “identidade europeia de defesa” não foi mais do que uma fantasia. Pior do que isso, esta guerra traduz também a inconsistência diplomática da UE numa estratégia para manter a paz nas suas fronteiras, com particular destaque para a Rússia. Mesmo os alargamentos sucessivos da União foram motivados por razões essencialmente económicas, de curto prazo, descurando as questões de risco em matéria de segurança e defesa. As declarações guerreiras de muitos dirigentes europeus, agora, mostram a sua profunda ignorância do terreno explosivo desta guerra em que as possibilidades de escalada nuclear têm de ser evitadas, não com falsa valentia, mas com racionalidade e sangue-frio. Depois de décadas a fio, incapazes de verem os abismos ou de escutarem as pancadas do destino, parece restar apenas aos dirigentes europeus acolherem-se, precipitada e incondicionalmente, no agreste regaço do poderio global dos EUA. O frágil edifício europeu tem, como tudo o que é humano, um limite de resistência. Esperemos que os custos desta guerra não provoquem hemorragias profundas, que nem a inspiração tutelar de Jean Monnet possa ajudar a estancar.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 13 de maio, página 9.

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