A Realidade (infelizmente…) não é Facultativa

A campanha eleitoral conseguiu o prodígio de não falar do essencial: o que fazer perante as ameaças cada vez maiores, e que crescem exponencialmente a partir do presente, projectando-se no futuro. Nem mesmo a longa seca que aflige o país convenceu o discurso partidário a descolar das promessas delirantes sobre o mirífico e luminoso Portugal futuro onde todos seremos felizes. Contudo, há sinais que indicam a natureza algo patológica desta fuga organizada da realidade. Entre os vencedores eleitorais temos duas relíquias, recuperadas dos saldos da memória. A primeira é a de um partido neofascista, com um programa de ódio, como nunca existiu em Portugal (o conservadorismo de Salazar ficaria chocado com os grunhidos e o mau uso da língua portuguesa destes seus falsos apaniguados). A outra novidade, mergulha aos inícios do século XIX: os liberais, classe média, urbanos, bem-falantes e cheios de confiança ilimitada no mercado e na mão invisível, aí estão, prometendo romper com os males que nos assolam praticamente desde o dia em que garantimos as mais antigas fronteiras da Europa no Tratado de Alcanizes (1297).

Além da seca, o mundo analógico de carne e osso foi somando notícias, “contra toda a esperança”. Logo no primeiro dia do ano, ficámos a saber que na União Europeia os interesses dos grupos empresariais e dos Estados nacionais, que com eles vivem em concubinato, não têm pejo em lançar as promessas do Pacto Verde Europeu (que foi objecto de análise nesta crónica na altura do seu lançamento) para o lixo. Num compromisso que poderia ser subscrito por Trump ou Bolsonaro, a União Europeia prepara-se para aprovar uma taxonomia energética, que vai considerar o gás natural e a energia nuclear como “amigas do ambiente”, beneficiando de um estatuto oficial de privilégio no mercado financeiro. Em vez de diminuir os abundantes subsídios às energias que mais contribuem para a concentração de gases de efeito de estufa na atmosfera, que é a força motora mais relevante das alterações, a UE vai aumentar indirectamente esses subsídios, lançando uma imensa confusão nos fundos de investimento e nos bancos que acreditavam serem as palavras da Comissão Europeia dignas de credibilidade. Os motivos para esta situação são, tristemente, fáceis de entender: tratou-se de um entendimento do eixo carolíngio em que a UE se transformou. Para a Alemanha, e a sua indústria, é preciso facilitar a vida ao gás natural, tanto mais que a pesada obra do pipeline directo (Nordström 2) entre o fornecedor russo e os consumidores alemães, passando debaixo da coluna de água do Mar Báltico, está pronta a entrar em acção. O nuclear, por sua vez, é fundamental para a França, que ficou dependente desta perigosa e irresponsável indústria, desde que o sonho de grandeza imperial do general de Gaulle transformou Paris numa grande potência atómica, possuidora de uma terrível e dissuasora force de frappe. Novas centrais asseguram não apenas energia eléctrica, mas também a matéria-prima de que se fazem os novos mísseis em preparação.

O objectivo da neutralidade carbónica para 2050, com reduções enormes até 2030, parece cada vez mais uma miragem. Não apenas pelos recuos que venham a ocorrer na Europa e nos Estados Unidos. Estudos que não cessam de chegar ao conhecimento público, mostram que as reduções das emissões de gases de efeito de estufa nos países com maior acumulado histórico (essencialmente os países ocidentais e a OCDE em geral), mesmo que as ambiciosas promessas sejam cumpridas, serão sempre ultrapassadas pelo enorme aumento das emissões dos países de fora da OCEDE, que sofrem a pressão das suas populações para seguirem o modelo padrão de capitalismo de consumo intensivo. Cerca de 24 países não-OCDE, onde sobressaem a Índia, o Brasil, Indonésia e a África do Sul, tornar-se-ão os novos campeões na alteração da estrutura química da atmosfera que terá como resultado final uma subida brutal da temperatura média da atmosfera, capaz de deixar vastas regiões do Planeta inabitáveis ainda bem antes do final deste século. A professora Kelly Sims Gallagher designa, correctamente, o que nos espera como “O próximo Tsunami de Carbono” (The Coming Carbon Tsunami, Foreign Affairs, Jan-Feb. 2022, 151-164). Como poderíamos evitar esta tragédia de proporções inauditas? Através de uma cooperação internacional que garantisses a esses países uma ampla transferência tecnológica e financiamento garantido para que as suas crescentes necessidades fossem satisfeitas através de fontes renováveis. Olhando para o estado do mundo e para a miopia moral das elites não preciso de explicar aos leitores os motivos por que seria insensato esperar que tal seja possível.

Para fechar o artigo, recordo um nome de que iremos ouvir falar amplamente nos próximos anos: Thwaites. Trata-se de um gigantesco glaciar situado na Antártida ocidental, que irá colapsar nos próximos meses ou anos. A quantidade de água doce que vai juntar-se aos oceanos elevará o nível médio do mar (NMM) em cerca de 65 cm. Algo que acrescenta aos possíveis 100 cm de subida apontados nalgumas projecções até 2100. A maioria absoluta do PS apresenta várias desvantagens. Uma delas é que durante os próximos quatro anos não nos poderemos evadir, alienar da realidade, nesse mundo paralelo e ficcional que se inaugura em cada campanha eleitoral.

Viriato Soromenho-Marques

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