Há uma frase de Marx que sintetiza o abismo que separa os nossos dias da energia delirante do século XIX: “A humanidade só se coloca tarefas que está em condições de solucionar.” (1859). É uma declaração axiomática de um optimismo religioso (embora laico) que ultrapassa as fronteiras ideológicas, servindo de bandeira à mentalidade dominante de Oitocentos, a cuja caricatura trágica nos caberá tentar sobreviver.
Marx foi o primeiro a compreender, com uma profundidade filosófica – completamente ausente nos hodiernos técnicos especializados que oficiam a logística da economia global – a natureza incomparável do novo capitalismo forjado nesse mesmo século XIX. Ao contrário dos modos de produção anteriores, o capitalismo era o único que possuía uma revolucionária dinâmica interna de infinito. O mercado deixou de ser um instrumento ao serviço da economia e da sociedade, para se transformar num deus, simultaneamente, sedutor e cruel, colocando ao seu serviço a ciência, a técnica, a indústria, a natureza e as pessoas. E isso num quadro sempre expansivo e cada vez mais global.
Ao contrário do que Marx esperava, a vertigem demolidora da “sociedade de mercado”, onde nada escapa à voragem da esfera de transacções e do lucro pelo lucro que a anima, não foi travada pelo proletariado, como classe salvadora e messiânica. Outro grande pensador, que viveu a experiência posterior do fracasso dessa primeira globalização industrial, iniciada no século XIX, onde se incluíram duas guerras mundiais e totalitarismos para todos os gostos, alertou para a necessidade de a sociedade estar preparada para não ser, de novo, avassalada pela distopia dos “mercados auto-regulados” (Karl Polanyi, A Grande Transformação, 1944).
Em 2019, os avisos de Polanyi parecem tão certeiros na teoria, como ineficazes na prática, como as profecias de Cassandra. O credo neoliberal da segunda globalização vence em todo o planeta. Os pioneiros anglo-saxónicos apresentam, contudo, os primeiros sinais de senilidade, com um delinquente na Casa Branca e uma Grã-Bretanha governada por uma espécie de segunda edição desse Grande Parlamento do século XVII, que desaguou em guerra civil… A vanguarda do capitalismo está hoje na Ásia, onde a conversão do bolchevismo ao mercado se transformou no principal motor da globalização. Nunca a tecnologia foi tão letal e poderosa. Depois de ter convertido a humanidade ao estatuto útil de “recursos humanos”, de rasgar a terra em busca de energia e metais, de exterminar a biodiversidade, de poluir a água doce, de acidificar os Oceanos, a trituradora do mercado mundial, com os seus milhões de vassalos obedientes, apressa-se a imolar um futuro habitável, deixando para berço das próximas gerações um planeta escaldante e comatoso. A ascensão europeia dos Verdes, ou a tenacidade ética de Greta Thunberg, são sinais de esperança. Mas, confessemos: domesticar o mercado global e operar uma metamorfose democrática nas plutocracias neoliberais, como é o caso da nossa UE, parece ser uma tarefa mais digna de titãs do que de humanos.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, dia 8 de Junho 2019, página 31.