A PROVA DE FOGO DO FUTURO

Lembro-me bem do ano de 1988, quando, no seio da ONU, foi criado o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC). Nesse ano, o Verão foi particularmente violento (bastante moderado, se visto a partir de 2021…) e cientistas que nunca desistiram da sua cidadania, como é o caso do climatologista Stephen H. Schneider (1945-2010) escreveram profusamente sobre o próximo “século do efeito de estufa”, de uma Terra que a nossa debilidade moral, a começar pelas elites económicas e políticas, estava a transformar num sistema globalmente disfuncional. É nele que hoje habitamos.

O sexto relatório do IPCC, cuja primeira de quatro partes foi publicada ontem, causa no leitor um efeito paradoxal. O contraste abrupto entre uma prodigiosa obre de arte científica, e a confirmação do estrondoso fracasso no plano prático da acção concreta que seria necessária para combater as alterações climáticas, aproveitando os importantes ensinamentos deste e dos outros relatórios. Embora a atenção mundial se concentre nas 42 pp. do Sumário para Decisores Políticos, só este primeiro módulo totaliza 3 949 pp. que não teriam sido possíveis sem uma navegação por mais de 14 000 estudos científicos levada a cabo pelo generoso contributo de centenas de autores, revisores e peritos de vários saberes. Fracasso prático, contudo, pois apesar de todos os alertas, a verdade é que desde 1988 a humanidade emitiu mais gases de efeito de estufa para a atmosfera do que desde a consolidação do homo sapiens.

Este relatório confirma-nos tudo aquilo que há anos ainda poderia suscitar dúvidas. As mudanças em curso não são evitáveis, nem reversíveis. Contudo, a acção colectiva, a cooperação internacional são tão fundamentais para a mitigação (para impedir o descontrolo total da concentração de gases de estufa), como as iniciativas regionais e nacionais para a adaptação (que nos permite resistir, apesar dos impactos inevitáveis). O futuro que os últimos 70 anos de irresponsável aceleração consumista nos impuseram, deixa-nos ainda uma escolha fundamental que depende só de nós, como sociedade e indivíduos: mudar para um estilo de vida onde a resiliência se conjuga com dignidade, ou continuar a ignorar todos os alertas, até que o futuro se manifeste caoticamente, comprometendo a sobrevivência humana em largas regiões da Terra. Se utilizarmos esta escolha como crivo das actuais políticas nacionais e europeias, verificaremos que muitas das medidas em curso falham redondamente o teste do futuro.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de 10 de Agosto de 2021

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