A NOVA DISTOPIA DO ANTROPOCENO: INCENDIAR OS OCEANOS

Com apenas um aumento de 1,2ºC de aumento da temperatura média à superfície do Planeta, em relação ao período pré-industrial de referência (1850-1900), e já temos o Verão transformado num catálogo de desgraças: das ondas de calor em todo o hemisfério Norte, aos grandes incêndios, como aquele que no Hawai ficará para a história como o mais sangrento do último século norte-americano. Tendemos, contudo, a esquecermo-nos daquilo que se passa em 71% da superfície terrestre, nos Oceanos. Também no reino de Neptuno o monstro bicéfalo, económico-político, do regime plutocrático que governa o mundo está a ter bastante sucesso. A tarefa de exterminar, contaminar, exaurir até ao tutano, e finalmente, incendiar o grande azul-marinho da hidrosfera está a ser prosseguida com método, disciplina e notável sucesso.

Ultrapassando todas as linhas vermelhas

As ondas de calor não poupam os mares. Os serviços britânicos de meteorologia e a Agência Espacial Europeia confirmaram que em junho, as águas marinhas do Reino Unido estavam 3 a 5ºC mais quentes do que a média para a época. No início de agosto, os serviços de alterações climáticas do Programa Copérnico da UE informaram que a temperatura média global das águas marinhas de superfície tinha atingido o máximo histórico de 20, 96ºC. No mesmo período, na Florida, a temperatura das águas de superfície atingiu 38, 44ºC! De acordo com o IPCC, entre 1982 e 2016 as ondas de calor marinhas duplicaram a sua frequência, e desde 1980, aumentaram também a sua intensidade e duração. No Ártico, o desaparecimento do gelo estival de superfície continua a ultrapassar todos os registos e no extremo meridional, na Antártida, o degelo, é o que nos informam os satélites geoestacionários, continua a incrementar-se superando todos os cenários mais sombrios. No ano passado, uma onda de calor, abrangendo uma vasta área da Antártida, chegou, nalguns locais, a ultrapassar as temperaturas médias para o período em 35 a 40ºC!

Os aumentos tão acentuados das temperaturas nos Oceanos têm efeitos sistémicos muito complexos e de enorme alcance, infelizmente sempre para o lado negativo. Estudos recentes, no Hawai e na Austrália, revelam que, nas zonas de recifes de coral, mesmo os esforços bem-sucedidos para reduzir a poluição de origem terrestre e para preservar a biodiversidade, com a criação de zonas marinhas protegidas, podem ser colocados em causa pelo efeito de lixiviação causado pelo aumento das temperaturas (1). Outro artigo científico muito recente abordava o tema crítico da possível interrupção da Circulação Termoalina Meridional do Atlântico (AMOC, no acrónimo em inglês). Nos últimos 8 000 anos a AMOC tem estado estável, embora ao longo das sucessivas glaciações anteriores muitas perturbações tenham ocorrido. O que o texto dos irmãos gémeos e professores da Universidade de Copenhaga, Peter e Susanne Ditlevsen, aponta é para a possibilidade de existirem perturbações significativas já neste século, afetando também a Corrente Quente do Golfo, um importante segmento da AMOC, responsável pelas temperaturas relativamente amenas da Europa Ocidental. Devido a isso, em meados do século, por volta do ano de 2057, poderia ocorrer uma mudança radical (tipping point) no sistema climático global (2).

A Grande Corrente Transportadora Oceânica, de que a Corrente do Golfo faz parte

Um mundo governado pela “banalidade do mal”

E que fazem os poderosos por esse mundo fora, perante esta tragédia que se avoluma? Fingem que está tudo sob controlo e comportam-se, exatamente como os nazis que geriam os campos de extermínio: entretêm-se com outros assuntos, sobretudo em não perderem o seu emprego e os seus privilégios. Aquilo que Hannah Arendt descobriu ao analisar a personalidade de Eichmann, no seu julgamento de Jerusalém, em 1961, não foi que ele tivesse uma personalidade monstruosa, mas apenas que ele tinha aprendido a não pensar nas consequências dos seus atos. Administrava o melhor possível a máquina de extermínio, sem ponderar no seu significado, do mesmo modo que os gestores das grandes empresas de combustíveis fósseis celebram a abertura de mais poços de petróleo, ou de novas minas de carvão, sem se preocuparem com as consequências inevitáveis que tal acarreta. É isso que Arendt designa por “banalidade do mal”.

E o que fazem os governos? O que lhes mandam fazer. O governo de Londres, aprovou a abertura de mais de uma centena de novas explorações de petróleo e gás natural na área do Mar do Norte sob sua jurisdição. Londres, juntamente com Oslo, ao lado da China e do México, foram alguns dos países que defenderam o início da mineração nos fundos marinhos nas zonas de soberania partilhada, tal como ficou definido na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS, na sigla inglesa), de 1982, entrada em vigor em 1994. A Autoridade Internacional que a UNCLOS criou para gerir esses fundos marinhos fora da jurisdição dos Estados integra 168 países, tendo como órgão diretivo um Conselho que comporta 36 Estados. Foi este Conselho que se reuniu na Jamaica entre 10 e 28 de julho passado para discutir a eventual autorização da mineração desses fundos oceânicos. Desta vez, ainda se formou uma maioria de bloqueio de 20 países (entre eles, Portugal, Brasil, Alemanha e Suíça), mas estou convencido de que a banalidade do mal vai também prevalecer neste domínio.

Estamos a caminhar para um Planeta com um aumento médio de temperatura que poderá atingir 5 ou 6ºC no final deste século, continuando a subir depois disso. Continuamos a ser governados por ignorantes epistémicos e analfabetos morais – avençados pelos poderes fácticos que mandam nos mercados, o verdadeiro centro do poder mundial – que se apresentam a eleições onde as cartas estão viciadas. Num plano de filosofia da história e da antropologia, o que está em causa é sobreviver à vergonha de pertencer a uma espécie arrogante que se comporta como um vírus suicida, embora se atreva a reclamar uma filiação em deuses que ela própria criou e exterminou. No horizonte pessoal, o desafio, é o de saber se iremos esperar pelo golpe de misericórdia, paralisados na água fervente de um mundo cada vez mais inabitável, ou se nos ergueremos em revolta, mesmo sem outra esperança do que a de defender a dignidade mínima que só a capacidade de lutar nos pode conferir.

Referências

  1. Gove, J.M., Williams, G.J., Lecky, J. et al. Coral reefs benefit from reduced land–sea impacts under ocean warming. Nature (2023). https://doi.org/10.1038/s41586-023-06394-w
  2. (Ditlevsen, P., Ditlevsen, S. Warning of a forthcoming collapse of the Atlantic meridional overturning circulation. Nature Communications 14, 4254 (2023). https://doi.org/10.1038/s41467-023-39810-w

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 23 de agosto de 2023, página 33.

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