DIALOGAR COM EDUARDO LOURENÇO EM TEMPO DE GUERRA (II Parte)
Publicamos nesta edição a segunda e última parte do ensaio de Viriato Soromenho-Marques, dedicado a explorar as possibilidades abertas pelo pensamento de Eduardo Lourenço (doravante: EL) para uma compreensão do atual processo de declínio europeu, que a guerra russo-ucraniana acelerou de modo significativo.
1. Uma Europa sem a Rússia é uma Europa amputada. Já em 2007 era claro para EL que a Europa se encontrava numa rota de entropia autoinfligida. Com uma Alemanha transformada em mera potência mercantil, sob a liderança de Merkel, e com o resto da Europa olhando para as feridas internas que a crise financeira global iria causar no frágil edifício da união monetária do euro, o terreno estava aberto para que a UE fosse empurrada para uma política norte-americana de encurralamento geoestratégico da Rússia, visando criar um anel da OTAN à sua volta e fomentar conflitos internos nas suas fronteiras e no seu próprio interior.
Sobre isso escreveu EL:
“É lamentável e dramático que a Europa pense que está completa sem a Rússia. Discute-se o problema de saber se a Turquia, que foi o inimigo tradicional desta Europa, deve entrar na nossa União – e até há razões pelas quais se possa admitir que o deva fazer –, e ignora-se a Rússia, que faz parte da Europa desde que nasceu, ou, em todo o caso, desde que se converteu à fé ortodoxa. Pode a própria Rússia não estar interessada, ou não estar nas condições que esta Europa em construção impõe aos candidatos à adesão. Mas o que é certo é que, assim, a Rússia é obrigada a fazer o seu próprio jogo. Não vai jogar com os Estados Unidos, por causa da oposição histórica, mas vai rejogar, por exemplo, com a China. E a Europa assiste a isto sem saber o que há de fazer. A Rússia é o maior parceiro que a Europa tem, mas andamos a pedir batatinhas, para o gás, para isto e para aquilo. Para mim, é espantoso haver esta cegueira.” (1).
A cegueira europeia de que fala EL seria concretizada, primeiro na cumplicidade com a recusa reiterada dos EUA e da OTAN, sem sequer recurso a um prévio diálogo diplomático, às propostas diplomáticas da Rússia para a resolução, com garantias formais de valor legal, do que Moscovo considerava uma ameaça existencial à sua segurança como Estado. Depois, através do seguidismo acéfalo com que os países europeus, capitaneados pela polémica figura de Ursula von der Leyen, aderiram às ordens de Washington no que se refere às sanções à Rússia, que se transformaram, pouco tempo depois, num gesto de autoflagelação para as populações europeias e a sua qualidade de vida. A isso acresce uma via estritamente militar de intervenção no conflito, à qual a UE se rendeu quase completamente, destruindo a esperança de uma solução diplomática, que, mesmo por entre as hostilidades, se manteve aberta durante todo o mês de março de 2022.
A presciência de EL é notável, até no que se refere à nova aliança da Rússia com a China, contra grande parte da tradição da história russa. Na verdade, como refere o maior especialista norte-americano em relações internacionais, John Mearsheimer, o alinhamento de Moscovo com Pequim é mais um fruto podre de décadas de desastrada política externa dos EUA, aliada também à indigência intelectual e incompetência política dos governantes europeus. Mas a verdade é que nem EL imaginou que chegássemos à beira deste precipício em que nos encontramos ao fim de dois anos de guerra (2).
2. Para onde vai o pandemónio europeu? A Europa é hoje um grande navio à deriva num mar tempestuoso. Por muito que o queiramos, não será possível qualquer redenção no horizonte mais próximo (se é que haverá alguma…). Todos os cenários para os próximos anos variam entre o péssimo, o muito mau, e o mau. Péssimo, mas não improvável, será uma escalada da guerra para um patamar nuclear. Desde o fracasso da contraofensiva ucraniana de junho de 2023, a Rússia demonstrou uma significativa capacidade de recuperação no campo de batalha convencional, apesar do abundante armamento de ponta que a OTAN tem enviado a Kiev. O plano de guerra do Ocidente é totalmente insensato: apoiar a Ucrânia numa vitória total sobre a Rússia. Isso significaria Kiev recuperar todo o território da Ucrânia, definido em 24 de agosto de 1991. O mesmo é dizer, que o Ocidente considera viável e razoável que a Rússia, que é a maior potência nuclear do planeta, encolha os ombros, no caso (altamente improvável) de derrota convencional? Não sei quem rodeia o Presidente Biden, mas na verdade só alguns líderes europeus, como o ex-PM e o PR portugueses, parecem acreditar na vitória convencional da Ucrânia, sem que, como consequência de tal, uma cascada de fogo nuclear fosse desencadeada, pelo menos sobre a Ucrânia, mas correndo o risco do incêndio nuclear se alargar a outros países, dentro e fora do continente europeu (3).
Mas mesmo nos cenários menos destrutivos, os dados para o futuro da Europa estão lançados. As forças inerciais já libertadas pela guerra e pela entropia económica e social, que se vem acumulando há mais de uma década, não podem agora ser travadas. A ameaça populista, que em 2018 EL considerava ainda inconsistente, está hoje mais poderosa do que nunca (4). O caso mais sensível é o da Alemanha, onde as sondagens já colocam o partido de extrema-direita, AfD (Alternative für Deutschland), em segundo lugar, sendo particularmente forte nos Estados federados do leste (5). Manda a prudência que os líderes não se queixem dos povos. O que aconteceu desde 2008, com a crise económica e depois com a guerra, foi o fracasso da ação coletiva à escala europeia. A UE jamais conseguiu assumir o patamar do federalismo democrático no plano político, continuando a UE a ser governada pelo diretório dos maiores Estados e respetivos interesses dominantes. A união económica e monetária (UEM) continua a uma distância infinita do federalismo orçamental e fiscal que poderia financiar uma política social europeia e evitar choques assimétricos, como aqueles que devastaram a UE entre 2008 e 2014, na crise do euro, mais conhecida pela errada designação de “crise das dívidas soberanas” (que confunde consequências com causas). A retórica da paz, que tornou a UE num ideal para várias gerações de europeus, já não consegue esconder o seu total vazio. Mais de setenta anos não foram suficientes para a UE conseguir encontrar a sua identidade e interesses próprios em matéria de política externa e defesa. Quem não sabe quem é, está condenado a servir de vassalo daqueles que sabem quem são e para onde querem ir. A ação coletiva da UE, submissa ao desígnio dos EUA de preservar para si uma “pequena Europa”, arrogante e hostil em relação à Rússia, conduziu à inevitabilidade de uma guerra, da qual Washington quer tirar máximo proveito, não importando o preço a pagar pelos ucranianos e russos, mas também pelos cidadãos dos países da UE.
Os resultados das eleições europeias de 2024 serão um primeiro indicador. Não é impossível que a eventual chegada ao poder da extrema-direita em Berlim (2025) e Paris (2027) acabe por conduzir à implosão catastrófica da UE. Contudo, parece-me mais provável que ela se mantenha, sofrendo, todavia, uma profunda transferência de poderes para as capitais nacionais, reduzindo, ainda mais, os mecanismos de transferências financeiras entre Estados e regiões. Quem governa Portugal há muito que dá sinal de chegar sempre com atraso à compreensão das tendências de futuro que se avolumam. Contra as correntes tumultuosas de nacionalismo e de populismo, que se sucederão nos próximos anos aos fracassos da ação coletiva europeia, quem quiser nadar contra a corrente acabará por se afogar. Temos, como povo e Estado, de apostar numa navegação à bolina, nunca deixando de flutuar, jamais permitindo que a cabeça deixe de estar acima da linha de água.
Notas
- Eduardo Lourenço entrevistado por Luís Miguel Queirós, “Retrato de um Pensador Errante”, Público, 13 05 2007.
- “Andam os dois países [EUA e Rússia] a brincar às guerras, embora sejam os dois países mais importantes do planeta neste momento. A Europa é neste momento um continente pacífico e espero que assim se mantenha por muito tempo”, Eduardo Lourenço, Observador, 07 03 2018.
- John J. Mearsheimer, “Playing with Fire in Ukraine. The Underappreciated Risks of Catastrophic Escalation”, Foreign Affairs, August 17, 2022. https://www.foreignaffairs.com/ukraine/playing-fire-ukraine?s=09
- “Neste momento não há uma ameaça populista consistente na Europa. Há uma leve tentativa de ressurgimento daquilo que já conhecemos nos anos 1930 e 1940. Mas não vejo uma ameaça séria em nenhum país europeu”, Eduardo Lourenço, Observador, 07 03 2018.
- Viriato Soromenho-Marques, “O Impacto da Guerra na Alemanha”, Diário de Notícias, 26 08 2023.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Jornal de Letras, 6 de março de 2024, página 32.