A NOVA CATÁSTROFE EUROPEIA

DIALOGAR COM EDUARDO LOURENÇO EM TEMPO DE GUERRA (I Parte) (*)

Por

Viriato Soromenho-Marques

Mais de dois anos após o ataque russo à Ucrânia, com raízes causais complexas bem mais antigas, apetece indagar o que teria pensado e escrito Eduardo Lourenço (doravante, EL) se a sua longevidade lhe tivesse permitido continuar entre nós. Esse exercício, que seria inaceitável para um historiador e que é bastante problemático para um filósofo, implica uma disciplina intelectual estrita. Obrigará a dar a palavra ao nosso saudoso pensador, resgatando do risco de esquecimento ou de subestimação alguns textos que se nos afiguram essenciais para ajudar a refletir sobre o presente e o futuro desta Europa, uma vez mais, em acelerada degradação e fragmentação voluntária. Vejamos o que de essencial EL, repetidamente, nos procurou comunicar sobre os três protagonistas principais deste conflito: a Europa ela própria, os EUA e a Rússia. Portugal está evidentemente presente, nos vários registos desta convulsão tremenda, que oscila entre diferentes gradientes de destruição, sendo a possibilidade mais grave a própria aniquilação termonuclear da história humana, numa espécie de apoteótica realização material, na pulverização dos corpos, do niilismo metafísico.

1. Uma Europa que decidiu sair da história. A Europa é abordada no âmbito do método cultural prevalecente em EL. Ao contrário do que ocorria no final do século XIX, ao tempo de Nietzsche, onde a história e a geografia pareciam trazer em si, na sua articulação e contradição, as chaves de orientação para a reconfiguração de uma realidade europeia, condenada a uma “geometria variável”, hoje esse papel é desempenhado pela cultura, definida do seguinte modo por EL, numa conferência na Alemanha em 2009: “ (…) a cultura que predomina na Europa já não é preenchida por nenhuma paixão, mas antes por uma vontade de disfarçar com subtileza o seu fracasso em compreender a realidade” (1). Depois de se ter pensado como sendo a morada do universal, e ter revestido de filantropismo progressista o seu violento imperialismo quando era a rainha do mundo, a Europa, saída do duplo suicídio da Segunda Guerra dos trinta Anos (1914-1945), “viveu neutralizada entre os Estados Unidos e a União Soviética” (2).

Quando se reconhecia como o centro do Universal na Terra, e se unia militarmente a outros impérios “ocidentais”, por exemplo, para humilhar a milenar cultura chinesa no seu próprio território, na Guerra dos Boxers (1899-1900), a Europa deixou-se enfatuar de vaidade até acabar por implodir, sangrentamente, na desmesura do seu arrogante poderio, que nunca soube ultrapassar a apertada malha do Estado-nação. Depois de quase meio século sob tutela, sarando as feridas e limpando as ruínas, quando o milagre de uma Rússia, ressuscitada da implosão pacífica da URSS, lhe permitiu ganhar uma nova liberdade, a Europa da UE recusou regressar à história, negando “abraçar (..) a utopia de um destino comum livremente aceite” (3). Ao longo das mais de três décadas que nos separam da queda do Muro de Berlim, a Europa comunitária, transmutada depois em União Europeia, jamais conseguiu estar à altura das tarefas essenciais para garantir a sua sobrevivência. Uma e outra vez, EL, um europeu marcado pela dolorosa angústia que o seu olhar lúcido não permitia evitar, advertiu contra o risco de a Europa ficar definitivamente “fora da história – quer dizer, da vontade e do projeto que a conduz”. Isso aconteceria se os europeus fossem incapazes a assumir uma verdadeira “configuração política” (4). A atual metamorfose terminal da UE num vassalo incondicional dos EUA, numa corrida belicista em que se deixa instrumentalizar ao ponto da autodestruição, sem que as suas incompetentes elites disso pareçam ter sequer consciência, foi maturada muito antes, como os tempos sombrios da “Europa alemã”, nos anos da trágica governação de Angela Merkel, veementemente o demonstram. (5).

2. Os EUA tropeçam no seu próprio peso. As relações dos EUA com a Europa passaram por várias etapas até ao momento em que, depois de 1991, Washington decide assumir-se como superpotência unipolar (6). Até às vésperas da I Guerra Mundial, os impérios europeus olhavam para o outro lado do Atlântico com sobranceria, contudo, no início do século XXI, a situação não só era diferente, mas inversa. Escutemos EL, em 2007:

“De facto, neste momento, o problema da Europa é a América. Eles não sabem o que fazer de nós, mas continuam a ocupar-se e a preocupar-se connosco como se o soubessem. Nós é que não sabemos mesmo o que fazer da América. Passou o tempo em que tínhamos a veleidade de pensar que eles eram uns selvagens e nós a nata do mundo. E agora eles operam como se fossem senhores do planeta. De algum modo, são-no” (7).

É interessante referir que foi um português quem, antes de todos os outros europeus, foi capaz de antecipar, em 1870, enquanto ainda troavam os canhões da Guerra Franco-Prussiana, o papel global que os EUA estavam destinados a cumprir, em especial na pacificação de uma Europa endoidecida por imperialismos e chauvinismos cada vez mais irracionais. Escutemos João de Andrade Corvo (1824-1890), futuro ministro dos Negócios Estrangeiros de D. Luís I:

“Os Estados Unidos são chamados pelas circunstâncias a representar um grande papel na política do mundo; principalmente se os sucessos da Europa, como infelizmente tudo parece indicar, levarem esta a um período de lutas desastrosas de nação a nação, de violências contra o direito e contra a independência das pequenas nações, a um período de opressão e despotismo” (8).

Andrade Corvo vai ao ponto de antecipar, muito antes de qualquer estrategista ou geopolítico europeu ou estadunidense, o papel crucial do Arquipélago dos Açores para os futuros esforços de projeção da força militar dos EUA:

“A posição geográfica de Portugal, com as ilhas dos Açores situadas no caminho da América, está mostrando que é ele o Estado da Europa, cujas relações mais proveitosas podem ser à república americana.” (9)

A violência faz parte do código genético de todo o continente americano, e dos EUA em particular (10). Contudo, EL vai identificar o período entre 1945 – ano das bombas atómicas sobre o Japão que terminaram com a Segunda Guerra Mundial-, e 1949, quando Moscovo quebrou o monopólio nuclear de Washington, como sendo um período de extrema moderação no exercício do poderio mundial dos EUA. Escreve EL a esse propósito, em 1990, tendo em vista, certamente, a gestão pacífica do Bloqueio de Berlim (1948-9):

“(…) nesta época privilegiada em que gozava por mérito próprio do seu estatuto de vencedora principal do conflito, mas possuía, sozinha, a arma absoluta. Não há exemplo, na história humana, de semelhantes autocontrole e autolimitação de poderio na relação entre povos.” (11).

Esta apreciação de EL, sobre o que poderemos designar como um curto período de “hegemonia benigna” dos EUA, evoca uma apreciação pouco conhecida de Salazar sobre o que ele designa como “hegemonia plebiscitada” de Washington. Esta formulação do principal líder político do Estado Novo é surpreendente, quando é do conhecimento quase geral a sua profunda hostilidade pessoal à cultura e modo de vida norte-americanos. Estas palavras, proferidas perante a Assembleia Nacional, em 9 de novembro de 1946, revelam que as suas preferências subjetivas não lhe perturbavam uma análise realista sobre a reputação internacional de Washington nessa altura:

“Da última conflagração, esmagados o Japão e a Alemanha, surgiram para a hegemonia mundial dois grandes poderes: os Estados Unidos e a Rússia […] Os Estados Unidos sentem, como não sentiram em 1919, a responsabilidade da sua força e da sua vitória, e dá-se com eles o estranho caso de ascenderem ao primeiro plano da política mundial pelo seu próprio valor, sem dúvida, mas também impelidos, solicitados pela generalidade das nações. É quase uma hegemonia plebiscitada, tal a consciência da insegurança e da possibilidade de mergulhar numa catástrofe sem a ajuda da grande nação americana.” (12).

O juízo de EL sobre os EUA foi-se tornando cada vez mais severo à medida que a sua militarização e o seu intervencionismo, geralmente com resultados tão sangrentos como politicamente frustrantes, foram caracterizando a sua política externa, fossem os presidentes democratas ou republicanos. A década de 1990, viu a Europa ser progressivamente anulada, por cumplicidade ou arrastamento, no conflito do Golfo (1991), na guerra civil jugoslava, nos iníquos e ilegais bombardeamentos a Belgrado (1999). Particularmente crítica foi a condenação por EL da invasão do Iraque em 2003, sob falsos pretextos. Nessa altura, contudo, a Europa ainda se dividiu e alargou. Chirac e Schröder juntaram Paris e Berlim à Moscovo de Putin na condenação que a “velha Europa” fez da agressão norte-americana contra o Iraque. Em 2003, EL, seguiu a visão de uma América em conflito consigo própria, que é possível encontrar também no jovem Eça de Queirós (13). Nessa medida, condenando embora a guerra de agressão contra Bagdad, EL ainda invocava a possibilidade de regresso do espírito de Walt Withman contra a “Anti-América” de Bush, Jr. (14). Mas em 2008, EL já não hesitava em falar de um caminho dos EUA para um “superimperialismo”, baseado no poderio militar (15). Foi em abril desse mesmo ano que, na Cimeira de OTAN, em Bucareste, foi anunciado o convite à Ucrânia e à Geórgia para adesão à Aliança Atlântica, apesar dos protestos anteriores e posteriores da Rússia, invocando compreensíveis receios de segurança nacional (A segunda e última parte deste ensaio será publicada na próxima edição do JL)..


Notas

(*) Uma primeira versão deste texto foi publicada na revista da Associação Portuguesa de Escritores, O Escritor, n.º 9-10, 3.ª Série, novembro de 2023, pp. 189-198.

  1. Eduardo Lourenço, “Europe, or the Seduction of Lost Tome”, in: Ideas of/for Europe. An Interdisciplinary Approach to European Identity, Teresa Pinehiro, Beata Cieszynska and José Eduardo Franco (eds.), Frankfurt am Main -Berlin- Bern- Bruxelles- New York- Oxford- Wien, Peter Lang, 2012, p. 393.
  2. Eduardo Lourenço, “Meio século de dramaturgia política europeia” [1999], A Europa Desencantada. Para uma Mitologia Europeia, Lisboa, Gradiva, 2001, p. 215.
  3. Idem, “Europe, or the Seduction of Lost Time”, p. 395.
  4. Idem, “Meio século de dramaturgia política europeia”, pp. 230-1.
  5. Viriato Soromenho-Marques, “Understanding the Eurozone Crisis in the Mirror of Germany’s Visions of Europe, Dedalus, 25, 2021, pp. 13-45.
  6. Viriato Soromenho-Marques, “Há futuro para as relações entre os EUA e a União Europeia?”, O Regresso da América. Que Futuro Depois do Império? Lisboa, 2008, 105-128.
  7. Eduardo Lourenço entrevistado por Luís Miguel Queirós, “Retrato de um Pensador Errante”, Público, 13 05 2007.
  8. João de Andrade Corvo, Perigos. Portugal na Europa e no Mundo, Lisboa, Fronteira do Caos, 2005, pp.205-206. Esta edição, que é servida por um excelente estudo introdutório de Adriano Moreira, reproduz a primeira edição: Typographia Universal, 1870. Ver ainda: José Calvet de Magalhães, Breve História Diplomática de Portugal, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1990, pp. 183-187.
  9. Ibidem.
  10. “(…) toda a América, não só a do Norte, nasceu de um ato de violência, é como se um continente tivesse sido violado na Origem (…)”, Eduardo Lourenço em entrevista à revista Paralelo, n. º2, Verão 2008, p. 47.
  11. Idem, “Meio século de dramaturgia política europeia”, p. 218.
  12. Salazar, “Discurso na inauguração da I Conferência da União Nacional, em 9 de novembro de 1946”, Discursos, Notas, Relatórios, Teses, Artigos e Entrevistas. Antologia 1909-1953, Lisboa, Editorial Vanguarda, 1954, p. 311.
  13. Em Eça de Queirós podemos vislumbrar a tensão entre duas Américas. Uma poderosa e destruidora: “Nós entrevemos a América como uma oficina sombria e resplandecente, perdida ao longe nos mares, cheia de vozes, de coloridos, de forças, de cintilações. Entrevemo-la assim: movimentos imensos do capital; adoração exclusiva e única do deus Dólar; superabundância de vida; exageração de meios; violenta predominação do individualismo; grande senso prático; atmosfera pesada de positivismos estéreis; uma febre quase dolorosa do movimento industrial; aproveitamento avaro de todas as forças; extremo desprezo pelos territórios (…) e por fim um profundo tédio pelo vazio que deixa na alma as adorações do deus Dólar (…).” E outra América capaz de erguer o estandarte dos direitos humanos e da justiça: “No entanto há muita força fecunda nos Estados Unidos! Ainda há pouco deram o exemplo glorioso de uma nação que deixa os seus positivismos, a sua indústria, os seus egoísmos, o seu profundo interesse, e arma exércitos, esquadras, dissipa milhões, e vai bater-se por uma ideia, por uma abstração, por um princípio, pela justiça (…) A América do Norte quer a liberdade, o amor das raças, e bate-se pela liberdade, pela legalidade, pela união, pelo princípio, pela metafísica! E dispersa os exércitos da Virgínia!” (ob. cit., p. 162) Eça de Queirós, “O «Miantonomah»”, Prosas Bárbaras, Lisboa, Livros do Brasil, 2001, pp. 158 e 162. «Miantonomah» era o nome do chefe da tribo dos Narrangansetts que vendeu Rhode Island a um grupo de colonos comandados por William Coddington, na década de 1630.
  14. Eduardo Lourenço, Público, 08 03 2003.
  15. Idem, Público, 01 09 2008.


“Dialogar com Eduardo Lourenço em Tempo de Guerra. A Nova Catástrofe Europeia I”, Jornal de Letras, 21 de fevereiro de 2024, páginas 32-33.

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