A NOSSA ÚLTIMA LINHA DE DEFESA

Em 2014 o meu amigo Karl-Eckhard Carius e eu próprio editámos em Portugal e na Alemanha um livro evocando os 40 anos da Revolução dos Cravos. Chamava-se Muros da Liberdade (Mauern der Freiheit). Para além de um valioso espólio fotográfico, contava com a colaboração de vários autores portugueses e alemães. Recordo-me bem das palavras duras de uma das autoras convidadas, a economista Sahra Wagenknecht (n. 1969), também importante dirigente e deputada federal do partido alemão Die Linke, sobre a rapidez como Portugal tinha caído da categoria de predador para vítima, isto é, de país imperial e colonialista para o estatuto de neocolónia, numa integração europeia que realizava não um sonho de federalismo republicano, mas mais a distopia neoliberal de um sistema monetário liberto da intervenção do Estado. Uma ideia que o próprio Milton Friedman (1912-2006) tinha criticado, por extremismo, ao seu correligionário Friedrich Hayek (1899-1992).

Provavelmente Sahra Wagenknecht não conhecia a perigosa tendência para o suicídio que o grande pensador Miguel de Unamuno (1864-1936) – uma das raras figuras de primeira grandeza do país vizinho a interessar-se genuinamente por Portugal e pelos portugueses – identificava no povo português, a começar nas suas elites intelectuais, que ele viu serem ceifadas, de Camilo (1825-1890) e Antero (1842-1891) a Manuel Laranjeira (1877-1912), pela impetuosidade da nossa pulsão de morte. Essa descida colectiva de Portugal para a condição de periferia menor do projecto europeu não pode deixar de nos sobressaltar pela actualidade e extensão maior da síndrome suicidária que nos foi apontada por Unamuno. Particularmente, desde a crise da zona euro e da vinda da troika que não temos parado de descer por um declive sem fim à vista. Uma queda aplainada nos anos da primeira geringonça, para mergulharmos de novo com a pandemia. Mas tanto no tempo da troika, como já depois da invenção da geringonça, a tendência tanatológica estava presente. Como pode um país que foi império, que navegou oceanos desconhecidos e desbravou continentes em busca de riquezas vegetais (especiarias) e minerais (ouro, prata, diamantes…) voltar a cair na armadilha colonial, desta vez no lugar da vítima, daquela que pela sua fragilidade foi dominada, explorada e espoliada? Isso ocorre, hoje, num véu de irreflectida cumplicidade quando deixamos alienar os nossos recursos naturais – que são como as tábuas do navio com que enfrentamos as tempestades da história – num horizonte de curtíssimo prazo, dominado por lógicas cujo desenho estratégico nos transcende e nas quais entramos como meros fornecedores de matérias-primas, como mera base da cadeia alimentar da economia global e europeia.

Aconselho a (re) leitura do incisivo e fundamentado artigo de Miguel Sousa Tavares, “A Agricultura Irresponsável” (Expresso, 12 02 2021). Trata-se de uma síntese dolorosa do modo como este governo das esquerdas está a franquear o nosso território ao capital especulativo, colaborando com uma agenda quase neocolonial de “apropriação de terras” (land grabbing) que enxameia o país, mesmo em zonas deficitárias de água e com solos muito frágeis, com culturas intensivas de olival, de amendoal e agora de abacate. Tudo isso sem criar um único posto de trabalho, e deixando um rasto de deserto para o futuro. Assim como nos engenhos de açúcar do Brasil, os escravos vinham de África, trazidos pelos colonizadores portugueses, agora os colonizadores de Portugal trazem os seus escravos da Ásia.

Mas também temos o novo ouro e a nova prata. Depois da febre do petróleo e do gás, que só não avançou pelo protesto das populações lideradas pelos municípios, entramos agora na febre do lítio, de que Portugal terá cerca de 11% das reservas europeias conhecidas. O lítio constitui, no estádio ainda muito atrasado de desenvolvimento das baterias para carros e outras máquinas eléctricas, uma matéria-prima indispensável. Para alguém que como o autor destas linhas começou nas lutas ecológicas em 1978, é claro que devemos romper o mais rapidamente possível com os veículos movidos a combustíveis fósseis. Faz parte da urgência de descarbonizar a economia no seu todo. Isso não significa, contudo, que as decisões, sobretudo quando está em causa uma colisão de valores ambientais, não implique ponderação cuidadosa. Duas observações importantes: os veículos eléctricos não são angélicos. No seu completo ciclo de vida têm também forte impacto ambiental. Convém não confundir a propaganda da indústria automóvel com a verdade objectiva. Segunda observação: a Europa faz bem em querer assumir a sério o combate às alterações climáticas, mas isso não pode ser usado como chantagem para transformar Portugal num arquipélago mineiro, recriando no nosso país a catástrofe da “maldição dos recursos naturais” que tem transformado tantos países, recentemente saídos do estatuto colonial, em zonas de catástrofe ecológica e político-social.

Para quem não teme a verdade, sobretudo quando ela nos olha com um esgar ameaçador, esta pandemia é o princípio de uma era trágica e existencialmente desafiante, e não um evento excepcional que será sucedido pelo regresso à “normalidade”, esse obtuso conceito usado por quem não percebeu e não quer perceber nada do que está a acontecer no mundo. Ao contrário do paternalismo arrogante manifestado num artigo recente (L. Martins, C.A. Cupeto e A, Mateus, “Acesso aos recursos minerais e o direito de dizer não”, Público, 23 12 2020) que se inclina para retirar às populações e aos municípios o direito de intervenção preferencial nas decisões que os vão espoliar das suas propriedades, muitas delas em solos agrícolas e áreas protegidas, o direito de resistência por todos os meios legais é um dever patriótico, e a solidariedade para com a resistência dessas populações e municípios uma urgência cívica nacional. Para os articulistas e para alguns dos decisores que em Lisboa não temem transformar Portugal na Nigéria europeia do lítio, o futuro parece radioso. Para quem respeite os 9 séculos de história portuguesa, cada hectare de terra arável e floresta, cada km2 de oceano e biodiversidade, constituem a derradeira linha de defesa contra o perigo de nos transformarmos de cidadãos livres em refugiados ambientais na nossa própria casa.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras de 24 de Fevereiro de 2021

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