Terminou ontem no Porto a VIII Conferência Internacional de Incêndios Florestais, organizada pela Agência de Gestão Integrada dos Fogos Rurais (AGIF), presidida por Tiago Martins Oliveira. O que trouxe a Portugal cerca de 1 500 empresários, bombeiros e académicos relacionados com o combate a incêndios florestais cada vez mais intensos e devastadores – como o Verão português de 2017 bem o provou – é a procura de novos meios e estratégias de mitigação e combate a este flagelo, que nos ameaça o corpo e a fazenda, empobrecendo a diversidade ecológica dos territórios. Contudo, aquilo que quero destacar é o contributo de um autor norte-americano, Stephen J. Pyne, que foi convidado pela Conferência para apresentar a tradução portuguesa do seu mais recente livro, Piroceno. De Como a Humanidade criou uma Idade do Fogo e o que virá a Seguir, (tradução de Sara Veiga) Zigurate, 2023.
Das muitas ideias que justificam a leitura do livro, existem três que merecem particular destaque. A primeira consiste na reconstrução da tese, introduzida em 2000 no âmbito das Ciências do Sistema Terra, de que os tempos da história e da geologia se fundiram numa nova época designada por Antropoceno. Isso significa o facto de hoje a humanidade ser a maior força transformadora, substantiva e duradouramente, do próprio software do planeta: da biodiversidade à estrutura química da atmosfera, do clima aos ciclos do carbono, azoto e fósforo, passando pelos oceanos, criosfera e litosfera. Pyne, todavia, propõe uma leitura do Antropoceno a partir da radical mudança das nossas relações essenciais com o fogo, que, desde a pré-história foram determinantes na própria definição da identidade humana, seja físico-anatómica, seja cultural. Em segundo lugar, o Piroceno, a Idade do Fogo que hoje vivemos, resultou de uma enorme e veloz metamorfose. A partir do momento em que, com a Revolução industrial, começámos a recorrer maciçamente aos combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural), ampliámos exponencialmente o nosso poderio, mas também a nossa capacidade de destruição do mundo natural de onde viemos e de que dependemos, como a crise global e ambiental reiteradamente o prova. O fogo industrial, aquele que consome florestas fossilizadas que cresceram sob o Sol de há centenas de milhões, arde escondido nos milhares de milhões de motores que trabalham para o nosso conforto, nas estradas, cidades, fábricas, nos céus…Sem disso termos consciência, toda a nossa civilização é um fogo permanente que transporta o carbono da litosfera para a atmosfera. Pyne chama a atenção para o facto de que o significado profundo do fogo não é sequer estudado, pois é partido aos pedaços pela fragmentação especializada das ciências e das técnicas.
A terceira tese abre-se para o repto existencial do nosso futuro. A nossa relação com o fogo é uma síntese da odisseia humana. Passámos de uma relação de colaboração mútua com o “irmão Fogo”, como escreveu São Francisco no Cântico das Criaturas, para um pacto diabólico com ele. Como escreve Pyne: “nós também poderemos perecer no fogo se não controlarmos a sua combustão, isto é, se não nos controlarmos a nós próprios.” O perigo amplia-se enormemente se acrescentarmos o fogo solar que aguarda nas bombas de hidrogénio dos arsenais nucleares o seu momento de entrar, e acabar, com a história. Sei que é duro, mas num tempo em que todos os erros serão pagos superlativamente, o fardo da lucidez é a nossa única esperança de merecer o futuro.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 20 de maio, página 12.