Para quem não tenha desistido da decência democrática, a ideologia nacionalista merece bem a designação que Nietzsche lhe deu na década de 1880: uma “doença” (Krankheit), de natureza infecciosa. Nos anos que precederam a unificação da Alemanha sob Bismarck, Nietzsche mostrara satisfação pela ultrapassagem dos vestígios de feudalismo que tanto atrasaram o nascer do Estado alemão. Contudo, o filósofo depressa percebeu que o militarismo e o anti-semitismo iriam transformar o nacionalismo germânico numa força desagregadora, não apenas das esperanças universalistas do melhor da cultura alemã, mas também da possibilidade de construir uma civilização europeia cosmopolita e aberta. Ortega y Gasset, por seu turno, chamava a atenção, antes e depois da II Guerra Mundial, para o facto de que o nacionalismo se tornara num “provincianismo”, num inimigo da capacidade que as nações tinham tido no século XIX para se constituírem como veículo de futuro colectivo. Na verdade, desde que a Jugoslávia se desmoronou, o nacionalismo não tem sido outra coisa do que a confissão – combinando medo, agressividade e ressentimento – da incapacidade de construir um futuro onde todos caibam. A UE transformou-se no asilo de Estados devorados por incertezas existenciais (Itália, Espanha, França). O Brexit provou que a saída do Reino Unido da UE não aliviou, antes pelo contrário agravou, a sua crise de destino. Podemos antecipar, que finda a pandemia, ou a UE ganha o respeito dos cidadãos, oferecendo um horizonte que o paroquialismo nacionalista não vislumbra, ou acabará por ser a maior vítima dessa triste ideologia, devoradora de futuros.
Contudo, as nações, se libertas do vírus do nacionalismo, podem ser vistas como parte da casa comum planetária, como projecto colectivo e fonte de uma identidade – não baseada no “sangue e no chão” – alicerçada naquilo que os cidadãos podem realizar em conjunto, visando o futuro de todos e de cada um. De novo, Nietzsche: a nobreza que conta não é da origem familiar (o von dos nomes aristocráticos alemães), mas a nobreza forjada na disciplina e fidelidade aos sonhos de longo prazo. A nobreza unida pelo “para onde” (wohin), pela transcendência que só os grandes objectivos concitam. Tivemos recentemente um exemplo intenso de como Portugal ainda faz sonhar, conseguindo receber uma enorme retribuição daqueles que, não tendo raízes antigas no país, ou não tendo mesmo nascido em Portugal, escolheram este país como pátria da razão e do coração. Estou a referir-me a quatro atletas que se distinguiram à escala europeia: Patrícia Mamona, lisboeta de ascendência angolana, que conquistou a medalha de ouro do triplo salto na Polónia, um bom exemplo de que o passado imperial não deixou apenas uma herança negativa; Auriol Dongmo, nascida nos Camarões, e que com menos de um ano na selecção portuguesa, ganhou uma medalha de ouro no lançamento de peso, também na Polónia; Pablo Pichardo, nascido em Cuba, naturalizado português desde 2017, que ganhou na mesma competição a medalha de ouro do triplo salto; o malogrado Alfredo Quintana, nascido em Cuba, mas na selecção nacional desde 2014, que mesmo depois da sua trágica morte motivou os seus colegas de equipa a conseguirem a primeira qualificação do voleibol luso para os jogos olímpicos. São percursos de vida marcados pelo esforço e abnegação. Gente que é o exemplo vivo de que só é nossa aquela nação que pela lealdade e trabalho fazemos por merecer e acrescentar.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias edição de 20 de Março de 2021